03 setembro 2008

rir de boca cheia

Hora do almoço.

- Oba, bife e coca-cola, o melhor almoço do mundo!

Bernardo já afia seus dentes aparelhados e língua, só no rarefeito visual da mesa com toalha de plástico rendada sem pratos nem talheres. Segue o instinto que lhe reportam as riníticas narinas arrebitadas, na penumbra da sala de jantar sem a luz do sol, mesmo ao meio dia e meia.

Fico feliz, acertei hoje. Cozinhar é uma loteria. Também. Só a minha inevitável panela de ferro é que chia, cansada de ser tão pesada, até mesmo para si própria. Bifes e panelas de ferro nasceram para casar-se um com outro, com as cebolas em rodelas fazendo-se de alianças. E ainda joga-se o arroz por cima, para completar a perfeição da analogia. Bom, eu tento, ao menos.

- Mãe, o que é liberdade?

Silêncio. Aflição. Pense, pense, pense. Voce precisa responder alguma coisa. Olho para o copo de coca-cola que Bernardo leva ávidamente à boca e capto no ar uma idéia muito gasosa:

- Voce está vendo estas bolhas que estão no refri do seu copinho novo?
- Tou.
- Pois bem. Quando a gente bebe o refri, as bolinhas vão todas lá para dentro da nossa barriga e ficam lá, presas, junto com a comida.

Nisso, Bernardo, sem nenhuma cerimônia, e propositalmente, solta um sonoro arroto. Anabela ri e provoca em si mesma um acompanhamento para aquela ruidosa sinfonia. Acha-se muito engraçadinha e ameaça outro, sob o olhar risonho de aprovação de seu irmão mais velho. Eu a interrompo no quarto arroto, continuando a explicação:

- Então, aquelas bolinhas que estão presas lá dentro da nossa barriga se juntam, formando uma bolha grande e forte que resolve sair lá de dentro, na forma de um arroto, ganhando assim a liberdade.

Ela fixa os olhos em mim.

- Mas como é quelas ganham a liberdade?

Difícil é explicar que liberdade é algo que se ganha, assim como se ganha um presente. Pior: como seria tentar exlicar à ela o que é uma existência livre? Bom, vamos de novo, desta vez desenhando:

- As bolhas fogem lá de dentro, viram arrotos e vão se encontrar com seus amigos arrotos que já estão soltos pelo ar..."oi arrotinho", um diz ao outro, "tudo bom?". Ai, ai. Eu poderia ser dubladora de desenhos animados. Como se desenharia um arroto? Fecha parênteses.

Ela ri muito. Mas parece que entendeu, finalmente. E inicia-se uma nova sessão de liberação de bolhas rebeldes. É preciso praticar o que se aprende, não? Sim, para fixar a coisa na mente, senão é pura perda de tempo e de talento.

À noite, no jantar, o tira-teima:

- Nana, o que é liberdade?

Os olhos brilham. A boca rubra sorri.

- É um arroto!!!!