30 abril 2008

ao meu redor

Caminhando pela manhã sou capaz de dar bom dia qualquer estranho caminhante que passe por mim. Basta me olhar no olho e pretender qualquer coisa, mesmo que não o diga. Quem me olha no olho já tem a minha simpatia prévia, antes do bom-dia . E se capto uma faísca que se desprende desse rápido olhar, mina a minha curiosidade. É pena, sou crescida, e o código do caminhante não permite parar para nada, sob pena de perder a aceleração adquirida. Fica prá depois de nunca, então.

Caminhei hoje pela manhã ouvindo o iPod emprestado do meu filho. A seleção de músicas era dele e eu só passava prá frente quando chegava nas mais pesadas, e de pesada já chega eu. "Metal, Andrea!", como ele me diz, sorrindo. "Metal, Didi!", eu respondo, com o indicador e o mínimo erguidos no resto do punho fechado. Nada de mal em ser metal. Só que sou uma metaleira só por conveniência. Faz parte, como diria aquele outro.

Só prá não levantar vôo - hehe - , passava as "metal" prá frente. Queria o chão, mas um chão soft, mais macio que aquelas pedras irregulares da calçada, em compasso de dança lenta. E quando andava pela praça, ouvia uma cuja letra tinha uma frase "I'm all nacked around you", e nem sei se da Avril Lavigne, mas gostei do que ouvi. Tá, eu traduzo: "estou toda nua ao seu redor", ou algo como isso. Poderia também ser "estou nua em todo o seu redor", o que ficaria ainda melhor. Gostei da poesia.

Poesia, tênis, pessoas simpática caminhando ao sol, música, fones de ouvido e um iPod. Ferramentas que tenho para fazer o tempo parar, sem que necessáriamente ele páre. Para fazer o barulho da avenida sumir, mesmo que ali haja uma ruidosa passeata de estudantes em campanha "contra a dengue". Para fazer minha perna parar de doer num drible mágico com o cérebro que insiste em pensar na dor. E meu cérebro está distraído, enlevado, ligadão na música, neste sagrado momento matinal.

Ela, a música, toda nua ao meu redor. E em todo o meu redor. E por dentro eu, neste - mais uma vez - impreciso momento, e também mais uma vez pretendendo ser feliz. Consegui.

29 abril 2008

volver a los 17

A garimpagem da memória é algo surpreendente. Depois de viver uma vida condicionada ao meio que me transformou em outra pessoa, perdi quase que totalmente a noção do que era lá no início. E o início nos conta muito. Raros são aqueles que conseguem manter-se dentro daquele campo de força amoroso inicial, já que fatalmente e equívocamente temos de rompê-lo para poder "crescer".

Uma dia criei asas, voei prá longe e uma dessas viagens foi aquela em que fui para bem longe de mim. E o fiz porque era preciso. Todos precisamos sair de si para conhecer-nos outros. E somos muitos, até que um deles nos encante mais, nos reflita mais, e então adotamos a sua forma para caminhar sobre a terra. O problema é que nem sempre acertamos nessa escolha. Acho que daí é que vêm as famigeradas crises existenciais.

Fui-me assim nesta busca, numa data préviamente esquecida, para que não a guardasse e quisesse lá voltar, pois essa lembrança nada me diz. Mas posso afirmar que o que me moveu foi uma espécie de sentimento de liberdade plena - porém ilusória - aquela mesma liberdade que sente-se quando mergulha-se em uma piscina, sabendo-se não ser um peixe ou sereia, pois é preciso emergir para alimentar-se de ar, e sabendo-se que o espaço da piscina termina logo ali naquela lisa e gelada superfície revestida de lindos azulejos azuis.

Parece que caio hoje em minha própria teia sem rastro. Últimamente me pego querendo voltar no tempo. Mas o que eu quero com esse passado? Para que meu olho confuso olha tanto para trás?

Certamente não é uma questão de nostalgia, sou uma curiosa de mim mesma e procuro hoje cuidar-me como um jardineiro cuida de um roseiral. Sou toda flores e espinhos, mas minha paisagem é delicada. E, ainda que seja muito pretensiosa a idéia de voltar, eu devo tentar. Eu poderia defazer o feitiço que o tempo me lançou reescrendo a minha história, colocando peças soltas do quebra-cabeça que recolhi pelo caminho percorrido até aqui.

Tudo faz sentido e tudo tem seus porquês. Enchi caixas e bolsos com estas peças sem saber para que elas me serviriam um dia. Pareciam coisas sem sentido, desconexas, lixo, sombras, sobras, rascunhos inúteis. Se não sei o lugar de todas agora, estou em vias de descobrir. Reciclar é a palavra. O tempo, afinal, foi meu amigo. E continua sendo.

24 abril 2008

pânico

Minha vizinha da frente bateu à minha porta na noite passada, ainda de camisola, e agarrada à mãozinha da filha muito assustada. Ela chorava e tremia, numa palidez de espantar qualquer fantasma distraído que porventura ali passasse. E distraída eu abri-lhe o portão e a convidei que entrasse em minha casa, sem nem me preocupar em querer entender o que se passava, pois já o sabia muito bem.

Quando o pânico vem, é sem aviso prévio. Um verdadeiro terror para quem a carrega em si. Choro, calafrios, pensamentos mortíferos e mortais, aceleração cardíaca repentina, suores frios, dormência nas extremidades dos membros, náuseas, tonturas, rigidez do maxilar e medo...muito, mas muito medo.

E é assim que ela chega. Podemos estar em um aniversário, na estrada dirigindo, no cinema, na academia, na aula, na praia, na rua, na chuva, na fazenda: ele chega e toma conta, se enrosca feito uma cobra em nosso corpo e nos paralisa. A cabeça começa a destilar milhares de pensamentos simultâneos tão impossíveis quanto achar que aquilo tenha um fim. Perde-se a noção do espaço e do tempo, e o horizonte se torna um ponto preto e distante.

Minha vizinha chorava muito e me pedia socorro com os seus grandes olhos molhados. Os braços em cruz sobre o peito pareciam querer segurar seu coração, para que ele não lhe escapasse e um carro saído do nada o atropelasse e esmagasse no meio da rua. Magra, viúva, pequena, dolorida, frágil, só. E foi a mim que procurou para socorre-la naquela noite. Lembrei de minha amiga Rê, que sempre me socorria naquelas horas.

A primeira coisa que Rê fazia era me fazer sentar em seu sofá e me oferecer um copo dágua. E então ela começava a conversar, a me fazer mil perguntas e também a falar sobre os seus tantos problemas existenciais. E eu ia na sua lábia enquanto tremia e suava, com o copo dágua na mão. "Bebe tudo devagar", ela me dizia. E já pegava seu aparelho de medir a pressão e o colocava no meu braço. "Tá alta, mas já vai baixar", e eu só tinha a esperança que ela gentilmente me oferecia.

Nem lembro quantas vezes ela me atendeu, pacientemente. Solidarizava-se com todo aquele meu estranhamento àquela coisa que eu nem sabia ser uma doença já tão comum. Mais adiante descobri muitos conhecidos que padeciam do mesmo mal, e isso quase me consolava. A questão era: por que? De onde vinha aquilo? Por que eu?

As respostas destas perguntas eu não tive, sómente convivi com algumas desconfianças por uns tempos, o que não me levou a concluir nada. Precisei aceitar o fato da doença estar em mim para reunir forças contra ela. Vieram os remédios e minha incursão por terapias alternativas. Tudo o que fazia me indicava novas dimensões de prováveis crimes praticados contra mim mesma. Eu pretendia ser mais do que realmente podia ser, e me castigava por não conseguir.

Minha vizinha não quis entrar em minha casa. Pediu-me então que deixasse a filha pequena e que a acompanhasse até a sua. "Não gosto que minha filha me veja assim", ela me disse, e de fato, lembro que também não queria que meus filhos igualmente me vissem em plena crise. Sentia-me envergonhada. Vergonha de parecer mortal? Pode ser. Para meus filhos sempre pretendi ser uma super-mãe poderosa, que nada pudesse atingir. Pequenos, não iriam entender nada. De onde vem o medo? De onde vem o choro, mãe? E a tristeza?

Não era hora para estas descobertas. E não seria eu que faria esta revelação à eles, em plena crise.

A solidão, acho, provoca-nos estados de alma incompreensíveis. E falo aqui até daquela solidão que parece não existir, aquela que acontece quando estamos no meio de uma multidão. Sós, na forma de estar só, como se é só no escuro meio de uma animada platéia de cinema ou numa longa e mau-humorada fila de banco. Há muitas formas de ser e estar só, mesmo com muita gente ao redor.

Nestas horas o espaço torna-se tão pequeno, assim como os horizontes tornam-se pontos quase invisíveis. E os sons, as falas, os compromissos, as tarefas diárias, os acasos importantes, todos eles parecem sumir. Só e sómente só é que nos vemos no espelho. Como vampiros, todos os outros sumiram. O chão se abre mas não nos recebe. Ficamos suspensos, sentindo todas as dores da tortura sem nada poder fazer.

Naquela noite, coube a mim a tarefa solidária de desvendar a solidão de minha vizinha em crise. Persegui pistas que me levaram a um tipo de compreensão nem tão facilitada, pois nem a conhecia. Tentei imitar e me colocar no lugar da minha amiga Rê. E como ela, ofereci-lhe primeiramente um copo de água e lhe disse "beba tudo devagar". E comecei a falar sobre a vida e meus problemas existenciais, para que ela esquecesse os dela.

Foi preciso lembrar de tudo que já havia esquecido. Mesmo sem querer, abri caixas e caixas lacradas do almoxarifado de minha memória. Me espantei, tudo tão intacto ainda! E mais ainda o espanto de perceber que tudo sempre retorna, por alguma razão, numa noite qualquer em que uma desconhecida bate à minha porta.

23 abril 2008

se não tem, compre!

Perambulando pela rede, fui dar (óia!) neste sensacional blog de cartunistas gaúchos. Eu recomendo. http://grafar.blogspot.com/



Bom-humor, hoje em dia, é artigo de primeira necessidade.

Compre bom-humor, se não o tiver na sua despensa.

Em litros, em quilos, em embalagens descartáveis - mas não polua, recicle! -, em tabletes, às dúzias, a granel, granulado, em pó, em forma de chá, temperado ou in natura, instantâneo, cru, em grosa ou réstia, em extrato, em pedaços, em sacas, importado (arrisque-se!), desidratado, embalado à vácuo, em spray (não confunda), moído grosso, moído médio, moído fino, com pau, sem pau (eu prefiro com).

Há o câmbio negro, mas eu não aconselho, é bobagem pura. Bom-humor abunda por aqui. E é baratinho. Pega-se no ar e sem rede, nem aquela de caçar borboletas. Voce até pode usar a rede, se for assim, teatral ou dramático. Faça caras e bocas, levante as sobrancelhas e os braços e...záp! Caiu na rede, é borboleta.

Há aqueles que o destilam, coisa de muita paciência. Há os embutidos, os que vem de brinde, e até mesmo os que vêm por suposto engano.

Se voce já o tem lá na sua despensa do indispensável, use-o sem reservas, sem controle e à vontade. Derrame na sopa, na salada, sobre a sobremesa, lambuze-se. Se voce se sujar com o bom-humor, deixe estar que ele ficará ali feito nódoa benigna. E nem é preciso lavar depois, pois o que ele faz é dar mais vida às cores da camisa que voce veste todos os dias.

Bom-humor é bioagradável e sua geração é espontânea, parente do bocejo, do saco-de-risada e da mala sem alça. Só acaba quando voce quiser.

Bom, eu aqui disse para comprar...mas isso é circunstancial. Só vai comprar quem não consegue achar.

22 abril 2008

lembrei da dieta

Anabela, agora pela manhã, ainda de camisola de bolinhas, com um pratinho cheio de rodelas de massinha branca:

- Mamãe, aceita um biscoitinho de alface?

21 abril 2008

óculos da sorte

Abro o leve pacotinho branco, rasgando pela ponta, ávida por uma surpresa boa. Lá está o biscoito em forma de meia lua e, dentro dele, sua sorte em forma de palavras e números numa tirinha branca de papel.

Espio pela estreita fresta do biscoito. Olho para os lados, como se não quisese ter testemunhas de meu quase desesperado ato. Não, ninguém me olha. Estou só no meio de uma pequena multidão barulhenta, distraída e totalmente desinteressada no que tenho nas minhas mãos em concha.

O segredo é e será sómente meu, no momento em que eu souber dele. E isto me faz dona da maior coisa que possa existir no mundo. Tenho a mina de meu tesouro nas mãos, com o tesouro dentro, ainda por ser descoberto.

O meu segredo. Só meu, e de mais ninguém. A importância que dou a isso é imensa. Sinto o sangue gelar, as mãos ficam sem tato de tanto pegá-lo e manuseá-lo. Meus pés formigam dentro do sapato fechado e o chão parece que some. Esqueço meu endereço, meu número de telefone e as luzes à minha volta se apagam.

À minha frente, só brilham aquelas letras pretas na tirinha de papel branco. Aquilo mudará a minha vida, o meu destino, a minha sorte, de agora em diante. Nunca mais serei a mesma. Meus olhos piscam uma, duas, tres, um sem número de vezes, até que eu focalize o alvo. Sim, esqueci-me que preciso de óculos...e isso me chama à memória do quase-esquecido tempo. Ah, onde estão meus óculos?

Um breve lapso, pequeno , porém muito significativo. O tempo cobra de mim suas dívidas de graciosidade desperdiçada. Meus olhos me valeram sem este acessório por muitos anos. Reviro minha bolsa e nada deles. "Cadê meus óculos?", pergunto eu para mim mesma. E aí noto que o chão apareceu novamente, que minhas mãos já sentem e os meus pés voltam a sapatear suas volúveis e intrigueiras joanetes.

Era tudo o que eu não queria. Como pode acontecer isso? mesmo sem estar presente, meus óculos, aquele famigerado, aquele infeliz larápio roubou-me a alegria da surpresa do biscoito da sorte!

17 abril 2008

scrapbooking

Arte: Angela Cartwright (aquela do seriado "Perdidos no Espaço)

O scrapbooking - uma espécie de livro de recordações e recadinhos - já existe há algum tempo, mas só agora me chamou a atenção, talvez em função do fato de eu querer aqui escrever sobre minhas confusas memórias.

É mais ou menos o mesmo processo da escrita de um texto, só que, ao invés de o santo baixar e escrever com sua mão, ele garimpa fotos, recortes de revistas ou papéis decorativos, e faz uma colagem de itens superpostos a frases ou poesias ou textos, formando assim uma espécie de "tela de memória".

Coisa de paciência de ourives. Há que se ter muito tempo disponível para fazer isso. E boa mão para recortar e colar, além de criatividade para descolar idéias e combinar as coisas, sem que isso se torne uma massaroca de informação desencontrada. Há muita indústria interessada em vender miudezas para os compenetrados scrapbookers. E o preço destas coisinhas é bem salgado.

Sem saber disso, quando adolescente, eu já tinha um livro desses, e o guardo comigo até hoje. Recortava e colava ali tudo que achava interessante e significativo. Há fotos de revista, poesias cortadas de jornais e outras de minha própria lavra, textos melosos copiados de livros que lia, declarações de amizade à amigos e outros frufruzinhos de menina romântica e casadoira. Mas tudo era feito à mão, nada de acessórios caros.

Me orgulho de meu livro de recordações e de também te-lo mantido até hoje. Não pelo livro mas sim pela memória que ele me devolve. Nossa memória é algo de grande valor. Mas só hoje eu entendo isso. Por que só valorizamos algo quando ele se torna mais escasso, mais difícil de ser encontrado. Infelizmente é assim.

reloaded...

Este texto aí de baixo dava um livro. Eu o deixo incompleto por pura vontade de delirar mais sobre o assunto. O interessante mesmo é o processo. Vou pensar mais neste meu encontro comigo mesma.

Estou lendo muito Stephen King. E recarregando muito o (ou seria a?) Matrix. Ou seria "De volta para o futuro"?

Né, Meco?

Abra a porta...e veja onde voce vai ESTAR.

11 abril 2008

a chave

Lá estou eu, no passado, à minha espera.

Calça jeans debotada, melissinha com meias "soquete", bata indiana, perfume de Patcholy e o cabelo caramelado cacheado puxado para trás das orelhas, preso dos dois lados da cabeça, com "passadores". Estou de pé, pernas cruzadas, encostada no Gol branco, carro emprestado da minha mãe. Devo ter uns...19 anos. Estou no segundo ano da faculdade de arquitetura.

Me vejo lá no estacionamento, impaciente, como se esperasse alguém. E espero com a minha impaciência cega. Tenho um envelope nas mãos e o canudo de projeto pendurado às costas. Tenho pressa acho, sou ainda muito jovem. Apuro o olhar entre as nuvens do tempo: posso ver daqui que o envelope está endereçado a...mim! É uma carta para mim!

O problema é que eu não consigo me ver para poder entregar a carta que tenho as mãos. Sei que estou lá, em algum lugar, me observando e esperando. E isso é muito importante, disso dependerá meu futuro. Dentro dessa carta está uma chave. Só com ela eu poderei fazer contato comigo no futuro.

Cansei de esperar, anoiteceu, preciso voltar para casa. Estou aflita e confusa. Tenho lapsos de memória prévia, mas tudo ainda está muito vago. Vejo tudo tão nítidamente confuso! Seria isso mesmo? Será? Preciso me encontrar e me entregar a chave da outra porta!

Eu ali, tão jovem, tão senhora de mim, tão decidida, dando as costas para minha falta de visão. A minha pressa me rende. Sou jovem e tenho pressa. Entro no Gol e volto à casa de meus pais. E aquele envelope com a chave escorrega e se perde entre os papéis na pasta de desenhos.

Aqui estou eu agora, no presente, do alto dos meus quarenta e muitos, igualmente impaciente. Os cabelos deixaram os caracóis caramelados dos 19 e deixam agora uma franja cair sobre a testa. Os cabelos mudaram, mas sou eu a mesma que os penteia, ainda para trás. Cai também a pálpebra, o sorriso e outras partes escondidas de meu corpo. Ainda uso jeans, mas escondo artificialmente o que me cai naturalmente.

Minha cegueira dos 19 continua em mim. Ainda não me vejo mais. Aquela carta com a chave do meu futuro ficou perdida no espaço, solta na pasta que há muito se esvaziou.

Nunca soube o que eu quis que eu soubesse.

10 abril 2008

Cena na rua Três Portos

Nunca soube onde a rua terminava. Nunca cheguei a ir até lá. Só lembro que via um mato de eucaliptos naquela direção. A maior distância que havia percorrido era o equivalente a umas duas quadras. E, com pouca certeza destas distâncias, pois criança vê tudo muito grande, digo que não sei quem armou aquilo, naquela tarde que nem lembro como era, lá quase no final da rua Três Portos. Alguém armou um buscapé com um rojão em baixo de uma lata de conserva, e aquilo fez aquele estrago na perna da Márcia.

Estávamos todos a rua, brincando. Todos de chinelos havaianas, ou mesmo descalços, de roupas curtas, camisetas sem mangas, empoeirados da rua de chão batido que não via chuva há semanas. A rua era também o nosso jardim. E o meio da rua era palco de exibição dos buracos e seus pedregulhos, bem como daqueles que de nós se mostravam mais corajosos, cheios de novidades e artimanhas.

Artefato armado, palito de fósforo aceso, grito de alerta e muita correria. A brincadeira infanto-juvenil tinha só por limites a imaginação sem limites. Sabia-se que vinha um estouro forte e era preciso tapar os ouvidos, só isso. Mas, numa atitude mais dramática, nos abaixamos, eu e Márcia, buscando proteção sem achar que dela precisássemos, afinal, aquilo tudo era alegria de livre-brincar. E a nossa proteção também fazia parte da imaginação. Era um escudo invisível acima de nossas cabeças, ambas de cabelos curtos e idéias também curtas. Idéias de meninas curtas na altura e na idade.

E a explosão veio, como esperávamos ansiosamente que viesse. Mas a escutamos baixo, de tão apertadas as mãos nas orelhas. Mas a tampa da lata que tinha sido aberta por um abridor de latas, e que ainda estava presa à ela, destacou-se do resto e desceu, sabe-se lá a que velocidade, até nós. O alvo foi a coxa de minha irmã mais velha, que estava agachada ao meu lado, de olhos fechados e mãos tampando as orelhas, debaixo daquele escudo invisível que ambas pretendíamos que existisse.

Assim como o trovão vem depois do relâmpago, o grito de Márcia veio depois do que ela viu. E ela viu a carne da sua coxa serrada, aberta pelo projétil-tampa-voadora. A tampa fez outra tampa na perna de Márcia. Uma grande tampa mole de pele, carne e sangue.

Niguém sabe, ninguém viu. Corremos para casa, eu e ela, apavoradas. Ela chorando e gritando, mortificada pela dor e pela crueza da infame brincadeira dos amigos que estavam alheios ao acontecido. Eu corria às escuras pela rua empoeirada, tentando ser solidária à minha irmã naquela hora de dor. Ela corria à minha frente e essa a imagem recorrente de sempre. Márcia corria e gritava.

A brincadeira, o dia, a dor, o lamento, o castigo, o pó da rua, o mato de eucaliptos, Márcia correndo e gritando com a perna sangrando. Tudo aquilo ficou imortalizado na forma de uma feia cicatriz disforme na coxa de minha irmã, a qual a carrega consigo até hoje, com certo orgulho, como cicatriz de guerra. É bom saber-se vivo depois da batalha e ter provas de nossa coragem para cantar pela vida afora.

Falta em Márcia um pequeno pedaço de si que ficou lá na rua Três Portos. A mim faltaram um pedaço de braço, de coração, de pernas, de coragem para alcançá-la. Fiquei para trás, olhando por trás. Acho que queria compartilhar-me com ela, oferecer-lhe a minha pele, a minha parcela de suporte à dor. Mas faltou-me consciência e idade para entender como fazer isso. Eu era uma menina de pernas curtas, idéias curtas, cabelos curtos.

07 abril 2008

borboleta e mel

Manhã sonolenta. Dia sem cor. Manhã no automático. Noites sucessivamente mal dormidas. Pestanas quase coladas às bochechas. Vontades suspensas e outras esquecidas. As horas viriam a partir daquele instante, sem perdão.

A cafeteira choraminga seus orvalhos sobre um café que espera e espia através da lente grande angular da jarra de vidro refratário. Todo o vai-e-vem na cozinha fica registrado no vácuo do vidro refratário. Jarras de cafeteiras podem contar estórias escabrosas de cozinhas e seus cafeteiros criminosos. E café que não espera não é café.

Duas fatias de pão escondem sorrateiramente a fatia dupla de queijo. E no pão pequenos e lustrosos grãos de linhaça estão prontos para o terror que há de vir da sanduicheira, aquela boca dentada sem garganta e insuportávelmente quente. Todos morreriam, todos eles. Natureza morta de grãos torrados incrustrados no queijo derretido, ao dispor de uma boca que ainda sonha com sua própria saliva no travesseiro. Mente quem diz que travesseiros não têm gosto.

Da torradeira ao prato, lá se vai o sanduíche no trêmulo elevador da espátula. A faca-cega-ninja nem pensa e o semi-esquarteja em cruz. A jarra desce seu conteúdo negro e fumegante na velha xícara do gato eternamente sorridente. A colher afoga a cabeça e gira. Então ela puxa a pesada cadeira, desaba ali o seu corpo torto e o seu olhar fixa no olhar do quadro luminoso da janela à sua frente.

Uma mordida, um gole, tudo mecânico. O comprimido pela metade e um outro inteiro no meio de tudo. E assim sucessivamente, até que o vidro da vidraça se derreta no vítreo do olhar. O gato sorridente reclama, o café vai secar. O prato ainda ri do último pedaço do sanduíche mal cortado, já frio. Mas seu olhar está lá na janela e não vê o vazio semi-transparente do fundo da xícara. Lá, além do quadro da janela está o nada. E além do nada, o varal. E além do varal, o muro. E além do muro, quem sabe, há vida.

O olhar vidrado sempre pede um socorro mudo. Uma mágica de inseto, uma pequeníssima borboleta, mostra um possível e invisível rastro de fuga. O olhar pisca, uma, duas, tres, um sem número de vezes, até focalizar aquilo que já não está lá, nem no nada, nem no varal, nem no muro. A borboleta e seu rastro a resgatam para si mesma. Com êxito, resiste à auto-hipnose e volta-se para o fundo da xícara e para o prato.

Aquela janela, aquela armadilha matinal, apenas dava luz ao espaço que inexorávelmente ali residia, mas não existia. O Nada, o varal e o muro, existiam num tempo que nem de sol se valia. Como acreditar? Que tolice! O olhar no prato, mais uma vez, uma última vez, pois é hora de partir. O último pedaço do sanduíche e a boca ardia. Então, como se disso dependesse a manhã, a suave mão generosa pousou ali dois pingos de mel.

"É preciso dar a luz para quem dela necessita", ela pensou. Seu olhar agora veria ali dois olhos dourados fixos nos seus. Sua boca sorriu por dentro e quis também seu sorriso de mel. Sua mão cedeu ao sorriso e, completando o desejo do olhar, cedeu também à boca o seu bocado de mel.

Pronto. Ao mastigá-lo, teve olhos e sorriso dourados lançados dentro de si. Seriam a sua arma secreta, seu trunfo, seu ás econdido na manga. Acreditaria com fé cega que isso mudaria o destino das horas, e que assim sustentaria sua vontade, seu prejuízo e seu ânimo naquele dia sem cor.

03 abril 2008

sonhei

Eu tive um sonho essa noite, um sonho que mal lembro de tanto querer contá-lo a quem quer que seja. E, se mal lembro, e quanto mais não lembro, mais a vontade de lembrá-lo e contá-lo, nem que seja para minha tão solitária audiência. Preciso saber antes de mim o que se passa dentro de mim.

No estranhíssimo sonho - e todos eles são sempre e inegávelmente muito estranhos - eu sobrevivia à minha própria inconsciência adormecida. Ainda bem. Aquela mesma inconsciência que, uma vez despertada pela música do sonho, me deixa pasma diante de mim mesma, que me assusta diante do que há lá dentro escondido e pronto para me arregalar a garganta e o peito em um grito quase mudo de tão abafado. Nunca consegui gritar em um sonho. Gritar em sonho é escândalo.

Todos os sonhos são pesadelos legítimos e intransferíveis, não há sonho que nos dê paz. Acorda-se ou não num pulo que não se pula, queria-se mais ou queria-se menos, ou simplesmente queria-se que o chão subisse e nos alcançasse os pés, que nos resgatasse do tormento da total incompreensão.

No sonho paga-se - e caro! - pelo transporte lá na saída, e depois de descer dele.

Sonhos são verdadeiros campos minados. E nem a cautela nos aparece para tentar salvaguardar-nos de inevitáveis explosões anunciadas. Nem mesmo a covardia comum nos mantém estáticos e seguimos em passos largos, quadro a quadro mutantes em longos segundos. E o precipício nos chama no seu mais fundo fundo. A queda é livre, caímos feito anjos, mas o chão que nos recebe inexiste na memória. Antes disso, acordamos.

Pior é ainda que assistimos a tudo isso dormindo, de olhos bem fechados, pés descalços e seminus, o que nos deixa ainda mais desprotegidos e palpáveis. O tempo fecha no sonho. E depois o tempo abre, precioso e escancarado, ao som do sempre consciente mecanismo inabalável de um despertador.

02 abril 2008

Marilene ri

Almoço de domingo.

Mesa posta na sala, com toalha recém tirada da gaveta, toalha de domingo, alva, cheirosa, lisa, imaculada. Santa toalha domingueira entediada de tanto dobrada na gaveta dos milagres impossíveis daquele armário viajado-recauchutado, agora deitada sobre a lustrosa mesa de madeira de açoita-cavalo, nome rude e ecológicamente incorreto, quase um pecado impronunciável.

Nada de bordados, uma toalha de mesa comum, mas elegante em seus discretos desenhos azuis e rosas. Mesas de domingo devem ser como altares em missa de domigo, eu sentencio aqui, do alto da minha eterna e quase religiosa mania de perfeição crônica.

Bifes à milanesa, purê de batatas, arroz branco e uma salada colorida pontilhada pelo verde oliva de robustas azeitonas. Todos servidos em impecáveis e inoxidáveis recipientes da baixela presente longa-vida de casamento. Guardanapos de papel, palitos, azeite, sal, vinagre. Almoço de domingo é ritual. E que Deus esteja presente e pairando sobre essa toalha, pois Deus é branco e invisível.

Antes disso, horas na cozinha improvisada, da casa que não é minha, mas que faço minha por uma questão de urgência de teto e de paz. Cozinhas deveriam ser templos. Cozinhar também é rezar.

Os azulejos perfurados ainda cantam as canções dos armários que se foram com o último que aqui esteve a cortar e picar, armários que não quero tão altos pois meus curtos braços só podem alcançar e abraçar as maçãs que dormem no andar de cima do cesto de plástico ordinário. Meus curtos braços quase sempre apoiados sobre o gelado balcão da inclinada pia que pinga, cansados de tentar proezas não reconhecidas. O silêncio nunca me disse que o elogio é mudo.

Meus braços ainda se negam a cruzar sobre si mesmos, em protesto pela falta de portas. E o hábito do avental de morangos bordados, costurado e presenteado pela amiga ausente, parece nostalgia, mas não é. O avental ri de tudo isso como Marilene riria e esse riso ecoa pelos azulejos e dá brilho ao fogão e à geladeira.

Uma alma que ri é a cortina da janela da agora minha cozinha. Assim, crio forças e ergo a faca, como se fosse a espada do Reino, e dou as ordens de ataque nessa santa guerra do pão nosso de cada dia.