25 julho 2010

a casa abandonada

Na volta do colégio havia uma casa abandonada.

Aquilo era engraçado: a casa abandonada só existia na volta do colégio. Na ida, às 7 da manhã, ela não existia para os meus olhos. Estava lá, no meio do caminho, incrustrada na paisagem matinal e etérea daquela rua em aclive constante, mas simplesmente não existia. Para existir, era preciso que eu a visse, que a enquadrasse com meus olhos curiosos, mas meus olhos às 7 da manhã só contavam as lages de pedra das calçadas, meu caminho corrido e percorrido rápidamente em direção ao colégio.

Talvez, em todas aquelas manhãs, a casa dormisse, tal qual a minha vontade. E, se dormindo, se aquietasse e se tornasse invisível pelo seu silêncio. Casas abandonadas sempre fazem barulhos específicos. Zunidos, estalos, vidraças balançando com ventos repentinos e inconstantes ou mesmo o bater de asas de algum morcego solitário. Casas abandonadas murmuram e soluçam. Casas abandonadas chamam.

E aquela casa me chamava. Talvez me chamasse na ida, mas como eu não a via, tampouco a ouviria. Mas na volta, eu sempre a ouvia e via. Ouvia o chamado dela, e ela me dizia "venha me visitar, estou te esperando!", e todas as suas janelas fechadas pareciam piscar para mim. Eu podia até ouvir o rangir do portão que não abria fácil, era emperrado, mas, uma vez feito de ferro torneado, nem precisava abrir para ranger. Portões de ferro torneados e enferrujados contém rangidos em si mesmos, são ranzinzas por natureza. E a impressão que eu tinha era que aquele portão me odiava.

Muitas vezes atravessei corajosamente o portão ranzinza, na volta do colégio. Eu o empurrava com força e ele rangia alto. Ao entrar, vislumbrava o tronco rugoso de um grande antigo jacarandá, cujas flores caídas na calçada coloriam o meu caminho. Então, eu andava pelo corredor lateral e seguia até a varanda, e ali sentava nos seus degraus sujos. Ficava ali sentada por um tempo que não me preocupava em contar, pois, afinal, aquele era um tempo que só existiria mesmo para mim e para mais ninguém. Quando eu saía dali, ou saía dela, sempre me despedia com o meu olhar. Eu sei que ela sentia isso, eu a olhava com carinho, e no meu olhar havia a promessa de retorno. Sair dali era difícil, ela me segurava, como se tivesse longos e macios braços. Ao passar pelo portão ranzinza eu o ouvia dizer "vá logo, vá embora daqui!". Eu ria por dentro.

Hoje eu vejo que, sem saber, eu a entendia. A casa abandonada vivia para dentro de si. Nunca havia entrado dentro dela, mas podia imaginar como eram seus quartos, suas salas, seus compartimentos secretos. Eu admirava a velhice de suas paredes descascadas e cheias de rachaduras, seus beirais incompletos semi destruidos, seu piso desgastado pelo muito pisar. A janela do sótão era menina, ela cantava. Se houvesse um porão, era dele o ronco que ouvia vez ou outra. E de sua cozinha, capturava no ar os resquícios dos antigos cheiros da salsa e dos assados com batatas no forno a lenha.

Muitas almas ali varriam com o vento as folhas das antigas árvores do pomar, pois casas assim sempre teriam flores e frutos no seu jardim. Os aromas dos frutos faziam parte dela , o jardim florido fazia parte dela, a pequena horta fazia parte dela. Tudo, além dela mesma, era ela e ainda ali ainda residia, mesmo que só na memória da casa abandonada.

A casa tinha muito a me contar e me contava aos borbotões, em partes desencontradas. Eu juntava as partes pacientemente. Histórias de homens, de mães e seus filhos, seus netos e bisnetos. Histórias de nascimentos e mortes, de chegadas e partidas, de alegrias e tragédias. Histórias de amor, de ódio e de solidão. E eu via e ouvia. E eu a sentia. O hálito da casa era doce. Mas não conseguia guardar nenhuma de suas histórias. Era ela a falar e falar, sempre, e eu a ouvir e ouvir. Muitas vezes o meu silêncio a aturdia, a deixava aflita. Mas eu não tinha nada para contar, era muito jovem e sabia quase nada da vida de uma casa.

Muitas visitas minhas à casa aconteceram. Lá eu nunca me sentira só, nem com fome, nem sede, nem nunca sentira medo. A casa tinha lá seus mistérios, seus achaques, seus fantasmas que a incomodavam e lhe tiravam ainda mais o viço. A cada dia ela se acabava, parecia que sua energia lhe escapava, e era disso que ela precisava, da energia da minha presença, que a cada dia depositava ali. Eu me sentia livre dentro daqueles muros, ela ceitava que eu me sentisse livre e reconhecia a minha liberdade. Sem mesmo me ouvir, nem saber quem eu era, generosa, ela me acolhia e deixava-se habitar. Compartilhava-se um bem que não se sabia, era mútuo, e seria quase eterno.

Um dia a casa foi demolida. Uma demolição rápida, pela manhã. Amanheci, fui ao colégio e na volta ela agonizava. Parei à frente, incrédula. So existia ainda a fachada, sem as janelas que piscavam. Deixaram-na nua e eu vi o seu vazio interno, vazio do qual ela tanto se envergonhava. O telhado reduzido a uma pilha de lenha e cacos de telhas e eu ouvia o barulho de motosserras, vindo lá dos fundos. Paralisada, olhei para o portão ranzinza e este me dizia "vá embora!", mas eu fiquei ali, solidária, ainda tentando ouvir o chamado da casa abandonada, para que eu entrasse.

Mas ela não me chamou. Nem quando a motosserra parou eu a ouvi chamar. Homens rudes e desconhecidos circulavam como autômatos e empilhavam coisas, restos seus, grandes tijolos. Eu olhava as pilhas e reconhecia cada um dos pedaços. Uma máquina entrava pelo muro semi-destruído e arrastava as muretas dos canteiros e os pequenos arbustos que já haviam sido arrancados. Só o antigo e enorme jacarandá da entrada parecia estar incólume e talvez estivesse sendo poupado. No dia seguinte, nada mais existia, nem o portão ranzinza. Só o jacarandá triste e opaco, sem as suas flores.

Eu já não tinha mais onde parar na volta do colégio. A ida e a vinda se tornaram uma coisa só, um tropeço, um cansaço, uma coisa enfadonha e totalmente sem graça. Nem a curiosidade me movia os olhos, mesmo sabendo que a casa nova e moderna se erguia em volta daquele jacarandá, que o mantiveram, talvez, em sinal de respeito à memória daquela que a havia precedido. Mas eu não reconhecia mais o meu caminho, estava perdida na volta. Eu procurava os sinais do tempo e não via além das pedras das calçadas.

Na volta do colégio, perdida no vazio de um tempo que nunca existiu a não ser para mim mesma, naquela casa abandonada.




22 julho 2010

abstraindo o momento



Hoje, deparei-me com hienas cor de âmbar sob o peitoril daquela imensa janela que dá para o precipício dos eucaliptos fúcsias de Estolingrado.


Nenhum véu, nem as vinhas, nem os vãos.

E dentro das horas cujos minutos pingavam cera sobre o pires da xícara que ardia sobre as amarelas encostas daquelas tortas costas de DeMiltons, lancei-me ao hálito apodrecido das magnólias nauseabundas, num vôo sem esqueletos nem chumbo, na ânsia de vômito mais só, insone e insólito que nunca, em camadas e espasmos, houveram de haver no curto espaço cumprido por esta breve fenda atemporal que se me revela neste frígido frigir de ovos moles.

Nem as vinhas. Nem os vãos.

Nenhuma senda, nem sonda, nem lontra. Nenhum caramanchão. Tudo encerrava as navetes, e os molhes firmavam como luvas até o espartilho. Mudas, medos, malvadas múmias miavam nas catacumbas aureoladas dos eternos picos cerrados, e o cheiro era de montanhas de nenúfares. Ah, os eternos picos!! Sem sombra, daqueles píncaros nada se garfava, só gargalhava. Havia muitas heras, e as priscas eram outras...

O véu se fez veia. A Velha se fez virgo. O lance final sossobrava e nada vinha do que viria se viesse ser.

Que desperdício! Sim, as priscas eram outras. E o nada se fez mais nada.

20 julho 2010

Não me sigam




Não escrevia porque gostava de escrever. Não escrevia para que a lessem. Suas pretensões de existência naquelas telas eram mínimas, e para consumo próprio. Escrevia para chamar atenção de si mesma. Escrevia para poder enxergar-se como era. Escrevia para tentar comunicar-se com seus pensamentos escondidos. Escrevia para realçar cores, para aprimorar as formas, para aperfeiçoar-se na dinâmica daquilo que chamava de constatação de si mesma.

Há quem diga que a palavra escrita ou falada foi inventada para esconder pensamentos. Ela discordava! Ali naquela tela ela tentava abrir seu baú de segredos. Descobria-se. Intensificava-se. Exaltava-se. Dizia quem era e ao que vinha. E o que vinha era aquilo que pensava, do jeito que pensava.

E o jeito é de cada um, ela sabia. A beleza é de cada um. E há a beleza de cada um, de todos os jeitos. E isso a encantava.

Se jogava com palavras é por que gostava de jogos. Jogava palavras no vácuo da tela azul, como dados, como cartas. Mas não queria contar pontos, muito menos ganhar. Queria somente o jogo. Queria existir no jogo. Queria ser o jogo. Permitia-se ser o jogo. Mas só ela sabia disso. E este era um segredo cuja chave estava no que escrevia.

Mas um medo a assombrava a cada tecla desenhada, em cada palavra, em cada frase desenformada. Um medo terrível, uma sombra, um fantasma. E, se alguém, algum dia, conseguisse descobrir essa chave?

Aí o jogo terminaria. Terminaria suas chances, suas luzes, seu palco de ser, suas probabilidades de existência à margem do tempo e espaço. O tormento da sombra da compreensão. A cartada do mestre.

E isso, senhoras e senhores, significava a ela somente uma coisa: o fim.

Porém, salvava-se na tábua de uma última carta, escondida dentro da manga. Tudo mudaria e não mudaria por completo. Pintaria novas bolinhas nos dados. Inventaria um naipe novo. Sabotaria as roletas. Compraria os reias e os ases, faria pactos com curingas, tudo muito trabalhoso. A existência é trabalhosa. E seria tudo justificado, tudo pelo jogo. Tudo pelo vício de escrever. Tudo para manter o segredo da sua existência. O segredo da sua beleza.

Continuaria, custe o que custasse. Mudaria o segredo, se precisasse, mas só em última instância. Só no desespero.






19 julho 2010

Papo comestível I




Sushi. Pedacinho disso, com aquilo dentro, bem assentadinho, bem enroladinho, bem coloridinho, bem comportadinho. Comidinha burocrática e cheia de regrinhas. Feito - quase sempre - por mãozinhas pequeninhas, branquinhas, semi-transparentes. Mãozinhas que dançam a dança do sushi. A dança da alga ressecada. A dança do arroz todos-juntos-venceremos. A dança da manga com pepino e kani.

Prá variar, o problema do sushi é a sua interpretação. Ninguém entende o sushi como os orientais entendem. O sushi é um tanto quanto insossinho. Um cru denro de um mal cozido, tem tudo para ser um mau comido. É como música ambiente de restaurante. Ou como a monótona arte de ficar vendo a roupa rodar na máquina de lavar. Coisas de ritual que a gente entende picas.

Mas o sushi se salva pelo molho. Se não fosse aquele molho...oh, baby, para mim, o segredo está no molho! Orientais inventaram o sushi. Orientais comem sushi com chá ou saquê. Orientais são espertinhos, também inventaram o mojo do sushi. E sushi sem mojo é como um jardim sem flores, baby. Oh, yeah!

E há também - óh, óh, óh - a possibilidade de reinterpretação do sushi. Nós, ocidentais, temos mania de releituras. Queremos fazer a coisa do nosso jeito, e não interessa se burlamos todas as regras e preceitos milenares. Há quem faça do sushi uma mini-escultura, um exercício de equilibrismo de pedacinhos disso e daquilo em cida daquilo e mais um outro disso. E vale tudo, todo o tipo de mistura de texturas e sabores. Coragem, é preciso coragem.

Mas ainda é muito barulho por nada. A coisinha ainda é um trocinho.

Antes de ser uma chatice comestível, o sushi é uma burocracia mitológica e estilizada oriental. O sushi é um disfarce para a fome de uma lazanha à bolonhesa. Mas é de bom tom não fazer pouco caso do rolinho. Melhor mesmo é não ter medo. Se ele se soa incerto, beba antes um saquê. Pegue nos pauzinhos. Manuseie. Finja que é o maestro. Não se assuste, vai com fé que voce consegue. É como entrar numa fila de banco. Um dia voce chega lá.

Mas se voce não conseguir, fique só olhando os rolinhos e suas delicadezas. E tome-lhe-lhe saquê. Voce pode entrar em alfa. Cuidado, perigo, não deixe-se hipnotizar, os rolinhos são insossos, mas nunca ingênuos. Brinque. Faça um totem empilhando um sobre o outro. Ensaie uma flor, um colar, uma centopéia. Traga sua lazanha de casa e enfeite com os rolinhos. Mas seja educado e não deixe que o sushi-man o veja fazendo isso.

Ele tem aquela faca, lembra?

16 julho 2010

RainyMood.com

RainyMood.com

Adeus à Crisálida




Minha imaginação solitária segue seu rumo incerto.

Invento horas, partidas, chegadas. Invento os durantes, os tempos de acontecer. Sincronizo pensamentos com cores, danço nos acostamentos, planejo por mapas invertidos.

É hora de ir, eu sei. É hora de dizer adeus à crisálida.

Prendi-me a enganos. Prendi-me a detalhes. Quis achar o que quis. Achei, e agora quero perder tudo novamente. Ir sem deixar migalhas de pão, nem bolinhas de gude, nem moedas. É preciso que se desmarquem os caminhos.

É preciso ser bondosa consigo mesma, que se apague uma parte da memória.

A vida feita de ciclos é prazerosa, porém cansativa e dolorosa. O significado de tudo, ao final de tudo, pode ser só um lamento. E o lamento pode se transformar numa sombra que ninguém mais vê. Ficou lá atrás, perdido numa encruzilhada.

Estimo que a viagem recomece logo. Uma vez queria a pressa, hoje eu a exijo. Sem lenços nem despedidas, posso voar com minhas novas asas para lugares onde me permito ir.

Lugares de sonhos, de cores, de vida leve e aventureira.

14 julho 2010

Duas curvas, dois pontos



Manhã na cozinha solitária. Ouço ruídos, há por lá o que fazer, mas finjo para mim mesma que não sei o que é.

A cafeteira tosse engasgada com seus vapores e a geladeira treme de frio. O avental sujo e amassado suspira e desmaia sobre o encosto da cadeira torta, de mal com tudo, que só escuta a parede.
O pão dorme na cesta e palha. O copo pede seu banho. Garfos, facas e colheres não se entendem na pia.

Paro no vão da porta, empaco por ali, desisto. Penso naqueles gnomos e um sorriso leve me pega só de um lado da boca. tenho uma idéia melhor. Pego meu caderno e caneta preta. Há muita manhã ainda e eu quero tentar novamente. Quem sabe não é essa a hora daquele anjo?

O silêncio por mim imposto na minha busca por inspiração cede ao barulhinho da chuva na telha transparente do vão de luz. Uma voz ancestral, apavorada, grita em minha cabeça:

- Veja só, voce não limpou os vidros! Quanto pó!!!

Assustada, largo imediatamente a caneta sobre o caderno e o caderno sobre a mesa. Saio alarmada em busca do pano e detergente. Chego àquele vão da porta e empaco novamente. Alguma coisa acontece e eu preciso voltar.

Volto e miro o olhar na janela suja. E vejo que há algo ali que não tinha visto antes: um desenho de um coração, feito com o dedo, no pó do requadro de vidro. Agora sorrio um sorriso por inteiro. Foi Anabela que rabiscou ali mais um desenho, ela não se cansa.

Anabela me salva, como tantas vezes. E me faz lembrar que tenho o seu amor. O amor de minha filha me faz esquecer o pano e o detergente. Não vou lavar o vidro, quero o pó, quero o coração e o amor de minha filha.

Eu gostava de desenhar corações. Eu gostava de desenhar. Hoje desenho pouco por não mais acreditar no que desenhar. Cresci. Perdi a crença nas figuras de criança. Minhas mãos só vestem o lápis para desfilar em traço disforme e distante. Rompi com a forma e a forma se fez invisível. Corações não são mais corações.

São só curvas, nada mais. Eu só uno pontos. Meu desenho tornou-se burocrático e sem corações.

Aperto caderno contra o peito e rezo pedindo ajuda. Eu quero, meu anjo, ah, como eu quero! A mão gelada aperta a caneta e quase rasga o papel. Meu coração quase para. Minha caneta aponta um caminho novo. Imito Anabela e desenho um outro coração no pó da janela. E outro coração na página do caderno.

Meu coração, na ponta da caneta, quer voltar a ter a velha forma.









Caixa da Memória

(Essa aqui...não lembro quem é...mas e daí?)


Na mesa, com minha mãe, deixo de ser eu mesma para ser totalmente sua filha. Minha mãe acha que me conhece, mas ela não sabe quem eu sou. Nem eu mesma sei quem eu sou, como ela saberia?

Nos distraímos com as caixinhas de chá, com a garrafa térmica quebrada - que ela diz "eu a tenho desde o seu casamento!"- , com a toalha de renda sintética branca e escorregadia sobre a mesa de fórmica também escorregadia, com as pesadas facas remanescentes do antigo faqueiro, e com as xícaras desencontradas. Relevamos assuntos desencontrados e pessoas que passam ser deixar vestígios importantes.

A vida também é feita de coisas desimportantes. Um chá de jasmim pode muito bem lembrar uma tarde que se perdeu na memória. E não por ser uma tarde importante, mas por ser uma tarde perdida no tempo da memória. A memória daquela tarde é spam, que pode ficar no lixo e passar despercebida. A memória de um chá da tarde que pode ter existido sómente na nossa memória.

Nossa memória desimportante nos chama à importância. Queremos ser alguém dentro de nossa vida desimportante. E é por isso que guardamos pistas para isso, como uma caixa de fotos antigas, de antigos personagens que fazem parte de nossa história, de quem nem se sabe muito bem quem são.

Mas estão todos lá, reunidos dentro da caixa decorada, em poses tão herméticas quanto à própria existência. Há manchas amareladas sobre faces e roupas brancas. Pessoas já mortas nos sorriem dentro das molduras. Todas aquelas pessoas de nossa história cabem aqui, dentro de uma caixa e a caixa dentro de uma gaveta. E a gaveta da cômoda encerra vidas e vidas.

- Nem sei por que guardo essas fotos - diz minha mãe.

Gosto das fotos pela sua beleza estética. Não sei quem são aquelas ilustres pessoas. Sei que são, de alguma maneira, meus antepassados. Mas não confio nessa informação, pois antes de mim a história teve muitas faces e muitas foram as versões. Só posso crer naquilo que vi e ouvi para poder passar adiante, e naquelas fotos não há legenda.

Mas há a memória de minha mãe, que me salva dessa minha ignorância. Com ela, descubro que minha avó tabém foi jovem, que ela não foi sempre a velha que conheci e aprendi a amar. Então começo a pensar em minha avó de outra maneira, com um novo rosto, sem cabelos brancos e sem rugas. É estranho, muito estranho, parece que não é ela. Nesta momento fico aflita, quase perco a memória de minha avó.

É como perder algo que mal se tem. Temos uma memória que não consegue, por mais que se esforce, guardar. Se mal nos conhecemos a nós mesmos, estamos condenados a aceitar pistas plantadas e fotos sem legenda, dentro caixas, de alguém que amorosamente as guardou e nem sabia para que.




08 julho 2010

Bina e Rivotril




Bina é vesga. Bina é confusa. Bina é muito carente. Bina adora pão. Bina adora morder uma bola de tenis.

Ops. Bina é uma cadela. Uma cruza de não-sei-o-que com Rusky Siberiano, me garantem. Ela é marrom chocolate com manchas brancas. Ou seria branca com grandes manchas marrom chocolate?

Na véspera do ano novo, Bina foi para a praia, com a família de minha irmã. E eu fui para lá também, com meus tres filhos. Até aí tudo bem. Preparamos o lombo, o arroz à grega, a farofa e as frutas para a ceia. Vestimos branco. Sopramos balões e enfeitamos a casa. Colocamos os champanhes no freezer. Até aí, Bina estava numa boa, correndo pelo gramado

Só que à noite Bina pirou com os tradicionais fogos. Respirava com dificuldade e a língua pendente da boca, assim, de lado, parecia ter dobrado de tamanho. Não sabíamos o que fazer. Minha irmã, nervosa com o estado da cadela, que esperneava e procurava fugir a qualquer custo, olhou-me preocupada e disse:

- Vou dar Rivotril prá ela. Eu tomo, voce toma. Mal não vai fazer.

Eu assenti. Fui na cozinha e trouxe o vidrinho.

- Quantas gotas será que eu dou?
- Dá umas 3. Eu tomo 3 e eu sou mais pesada do que ela.
- É, vou dar tres. E ela é uma cadela, o efeito nela deve ser diferente do que o efeito em voce.

Ignorei a comparação por falta de ciência sobre o assunto animal. Meu sobrinho abriu a boca e tascamos o Rivotril na guela da ofegante cadela. Ela não se engasgou. Eu achei que ela ficou um pouco mais vesga.

- Dá um pouco de champahe prá ela.

Ambas olhamos para meu sobrinho, com aquele ar repressor.

- Tá, tá! Coitada da cadela, olha o estado dela!

Prendemos Bina dentro do quarto. Ela pulou sobre a cama, fez xixi, fez cocô. Deixou o quarto inabitável. Mas depois se acalmou e dormiu, não se sabe se do efeito do remédio ou de cansaço.
Lá fora, os fogos coloriam o céu.



Prezados ex-colegas

Olha, não me levem a mal, eu fui. E fui sabendo do que seria.

Seria daquele mesmo jeito como sempre foi. Na chegada um "olha quem vem lá", depois um "tudo bom, tudo bem?", em seguida um olhar caprichado na figura...hum, sim, todos envelhecemos, engordamos e estamos cheios de probleminhas estéticos, não? E mais, há também outros probleminhas. Ops, desculpa aí, minha máscara deu uma leve escorregada...

Mas há aqueles com aquela felicidade estampada e instantânea, querendo vender seu peixe. Há de se ter paciência, isso existe, sim. Apesar de tudo, há felicidades sobrando. Pegue sua senha, talvez ainda haja alguma para voce. Isto é, se voce quiser, é claro. Há quem diga que conseguiu a fórmula, que é fácil, que uma pequena fortuna se começa com uma grande fortuna e blábláblá. Sim, estamos bem, a família vai bem, todos com muita saúde...

Sua menina é muito parecida com...voce?

Ai, ai. Somos idênticas, não estão vendo? Ambas estamos deslocadas neste grupo. Não (re)conhecemos (mais) ninguém, mas queremos fazer gracinhas e agradar a todos.

Sinceridade? Deixa ver...há algo vibrando e tocando na minha bolsa, um celular com um relógio, dizendo que já é mais que hora de ir embora. E de vez.

02 julho 2010

meu olhar, minha TUKA

Só assisti ao "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" anteontem. O filme é de nove anos atrás, mas eu sou tardia, como todo mundo sabe. E não que eu queira ser. Dever ser algo químico, genético, efeito retardado...e, quando falo do tempo, tudo pode. 9 anos é um pentelhésimo de segundo na idade do mundo, não é mesmo? Logo ali.

(Então não vou me preocupar com a minha lentidão, até porque só eu mesma posso me cobrar a pressa que não tenho para certas coisas.)

Quando assisto a um filme que me encanta, fico possuída pelo seu espírito. E pode até acontecer de eu sair por aí pensando que sou a própria personagem principal. Se eu me identifico com ele - o filme e seu personagem - por exaltar e ressaltar meus próprios tesouros e pensamentos, eu o "adoto" para o resto da minha existência.

Mas, para isso, é preciso lembrá-lo.

Se pudesse emoldurar os filmes que gosto e colocá-los na parede feito quadros, eu o faria. Minha memória já não é como antes, esqueço - não tão facilmente, mas esqueço - de algumas cenas importantes. E é preciso sempre recordar de tudo, para poder recordar-se. Como naquele outro filme em que a moça acordava todo dia sem memória e tinha que lembrar de tudo através de uma fita de vídeo.

Devia ser assim. Acordar sempre com essa visão em pequenos flashes importantes de quem a gente é, para começar o dia sabendo quem é quem ou o que na sua vida, dos quais voce não pode esquecer durante os seus dias.

Recordar é um esforço necessário. É preciso saber-se para não se deixar ir vazia na direção do desconhecido. E também para deixar que o desconhecido nos engula e nos torne seres com identidade automática ou indefinida.

Quero lembrar de Amélie Poulain ao olhar para as nuvens em forma de ursos e coelhos. Tá certo, eu via mais ovelhas ao invés de coelhos e ursos, mas isso não faz a menor diferença. Mas eu ganhei uma câmera fotográfica, de minha madrinha, aos 6 anos de idade, e com ela fiz algumas fotos que se foram com o tempo. Lembro da marca "TUKA", preta, com um enorme botão vermelho.

Queria lembrar das fotos que tirava. O que será que fotografei? Eu poderia ter fotografado as formigas cortadeiras, com suas pesadas cargas de folhas cortadas nas costas, circulando trôpegamente nos galhos da goiabeira, lá nos fundos da casa "velha". Poderia também fazer instantâneos dos grilos no jardim da frente, nas manhãs de orvalho gelado. E até os vazios dos tijolos no muro em frente àquela casa, ondem brincávamos de "banco" e ali amontoávamos folhas de árvores, o nosso "dinheiro" tão fácil de encontrar.

Se hoje fosse o dia em que ganhei aquela máquina, eu faria muitas, muitas fotos de meus avós e de sua casa...pois ontem, fui até lá, e a casa não existe mais. No lugar da casa, só um terreno cheio de lixo. Nada de pomar, da horta, da cocheira. Foi um baque, um soco no estômago. Vi somente o muro semi-demolido, e o lugar onde era o portãozinho de ferro. Nada mais daquilo que via se fazia entender da imagem que guardo na minha memória.

Eu quis falar aqui da memória que tenho no tempo que ainda não sabia que a tinha. E confesso que não me é fácil. Precisaria voltar aos 6, volver a los 6, para saber. Ver com os olhos que ainda eram puros. Sei que guardo em algum lugar dentro de mim estes olhos e que eles ainda sabem olhar como aos 6.