29 novembro 2010

Num segundo




Atravessou a rua caminhando rápidamente e desviando-se cuidadosamente das pequenas poças de água. Era tarde de um domingo qualquer e chovia.

Um insistente zumbido na cabeça lhe inquietava. Pareciam vozes lhe sussurrando "olhe isso!", "olhe aquilo", fazendo com que ela se confundisse e esquecesse do que ia fazer do outro lado da rua. Piscava muito, apurava o foco, tentava enquadrar as imagens, tentava manter a calma: inútil. Olhava seus pés molhados e sua cabeça ficava em estado de alerta para tudo que acontecia, sem saber exatamente o que acontecia.

Levou um susto, parou e esperou um carro passar, apressado. E isso foi num segundo. E só um segundo foi necessário para que muitas coisas acontecessem.

Uma folha caiu. Um pássaro arremeteu-se em seu voo. Saía fumaça no chaminé da pizzaria. O amarelo das paredes havia desbotado. O aroma da chuva que escorria sobre o asfalto. O grafite brilhante dos guarda-chuvas. A palidez de Madalena, e suas costas arqueadas. O barulho do cadeado sendo aberto. O ronco do motor, o portão de ferro que abria, o alarme que disparava. Os anúncios nas faixas na marquise da locadora. Seu botão da blusa, aberto, deixava parte dos seios à mostra. As estreantes e piscantes luzinhas de um natal prematuro que se anunciava na janela do quarto andar. E o morador do quarto andar a observava através da janela piscante, fumando solenemente seu cigarro.

Isso tudo no tempo de esperar o carro passar, antes de atravessar a rua.

Um grosso pingo caiu, escorreu em sua cabeça e depois em sua testa. Levou a mão ao rosto e se livrou daquela lágrima celeste. Gostava de pensar que não havia nada entre o céu e sua cabeça, mas o vento frio lhe lembrava o quão vulnerável isso podia vir a ser. Ela pensava: "Minha cabeça, seu salão de baile. Minha cabeça, minha tortura. Minha cabeça, minha nuvem. Minha cabeça, minha confusão."

"Voce é o que voce pensa".

"Minha cabeça, meu problema."

O carro passou, e ela chegou enfim ao outro lado da rua. Sem sorte, pisou em falso em um buraco, desequilibrou-se e quase - quase! - caiu de joelhos. Sua cabeça, afinal, ainda tinha espaço para o instinto, e ela endireitou o corpo e o passo. Muitos outros pingos agora escorriam pela sua testa e ela nem se importava mais. Precisava do frio, do gelo cortante da chuva para acordar e ficar ainda mais atenta.

Tudo era digno de registro. Tudo acontecia em um segundo. Coisa muito importantes acontecem em um segundo.

Um segundo em sua vida valia ouro.






17 novembro 2010

Perto da lua



Ouço o que voce não ouve
vejo o que voce não vê.
Não há mal nisso
Há formas diferentes de chegar
ao mesmo lugar.

Vê? Lá em cima há
aquele lugar
bem perto da lua.
E a lua chama a subir...

Na hora da partida
eu fui e voce ficou.
E isso fez de voce
refém de si mesmo.

É pena.

Nosso lugar existiu
Entre issos e aquilos
mas o tempo de espera
e o destino
apagaram todas as trilhas.

Resiste, porém,
uma idéia.
Insiste, talvez
uma certeza.
Nada mais é sempre um
nada a mais.

E aqui cabe uma tristeza
quase infantil
de saber que ao final de tudo
ninguém mais lá
vai estar.