02 agosto 2011

Arrumação



Às vezes eu preciso de sómente um tempo. Um tempo comigo mesma, e mais ninguém por perto. E isso, urgentemente, como se disso dependesse o meu saldo de vida, como se isso fosse uma espécie de purificação interna imprescindível, uma reavaliação,um rearranjo, uma releitura, um balanço. Tá tudo desordenado, é preciso fazer como minha mãe fazia, ao ver meu armário todo bagunçado. Eu chegava, na volta da escola, e tudo estava vomitado para fora, no chão.

Eu ficava muito puta da vida. E o primeiro pensamento que me vinha era que minha mãe fazia aquilo só para me irritar. E não tinha perdão, era arrumar ou arrumar tudo de volta, que ela vinha com tudo depois para fiscalizar. E eu arrumava meu armário a contra gosto, como se fosse um castigo - que eu até achava que merecia - sem entender por que precisar fazer aquilo daquele jeito e por que minha mãe se irritava tanto com aquela minha, digamos assim, baguncinha, até porque ao fechar as portas do armário, tudo parecia legal, limpinho, ok.

Mas ela abria e fazia a tal inspeção. E tudo ia parar no chão. Houve uma vez - e que eu lembre, foi só uma vez - que os sapatos iam parar no jardim, atirados através da janela. Só se salvavam os cabides vestidos, bem pendurados, bem comportados, mudos e certamente paralisados de horror. É claro, eu não gostava de ver tudo jogado ao chão, gostava de minhas "coisas" do jeito que eram. Gostava porque era...fácil deixar como estava. E eu deixava acumular, todo dia contribuía para que o bolo de roupas aumentasse, com o meu total desleixo de adolescente bagunçada.

Não sei se minha mãe fazia isso com esse intenção, ela queria me educar, que eu me organizasse em meu espaço e provávelmente ela mesma já havia descoberto que isso fazia bem. Prefiro pensar assim, hoje, quando tenho a idade que ela tinha naquela época, mesmo sabendo que quando ela fazia isso ela não estava bem com ela mesma e queria que eu arrumasse o meu armário também por conta de outros sentimentos mal arrumados, que não eram nem um pouco meus. Eu estava legal, pouca coisa me incomodava na minha vidinha, minhas pequenas responsabilidades não me exigiam quase nenhum sacrifício.

Então eu arrumava a bagunça. Não tinha outro jeito. Mas, ao final, ao ver tudo arrumado, eu ficava satisfeita comigo mesma. A metáfora da arrumação de armário e muito boa.

Arrumar-se é bom. Falo de arrumar-se por dentro, quero dizer. Bom é parar com tudo, parar mesmo. Largar tudo e focar em si. Como é que estou por dentro? Aquela que mora dentro de mim precisa de ajuda? Aliás, onde é que ela está mesmo? Ela estava aqui da última vez que a vi...para onde foi? Olho o meu espelho, posicionado estratégicamente ao lado do armário: estar arrumadinha por fora não quer dizer que aqui dentro esteja tudo bem...

Arrumar-se como se arruma o armário cujas portas e gavetas não fecham, de tão lotadas de coisas dentro delas...e que se abre todos os dias, automáticamente, ve-se seu conteúdo transbordando, e nada se faz, por falta de vontade ou mesmo de tempo. Tá, sei, é mais por falta de vontade mesmo, por desleixo. Lembro que até calcinhas sujas eu lançava para dentro do meu armário, uma legítima porquinha. Tenho coisas "sujas" em meu armário, preciso levar prá máquina de lavar. Tenho roupas que não me servem, tenho que doar. Tenho roupas e sapatos estragados, tenho que mandar consertar, reciclar.

A metáfora do armário é mesmo ótima, não? Guardar coisas inúteis...um grande desperdício de energia. Opa, há alguém dentro dessa gaveta, pedindo socorro...minha mãe pedia socorro e eu não entendia. Ela estava com seu armário arrumado, mas os problemas que enfrentava eram grandes, era preciso mais armários desarrumados para arrumar. Arrumar acalma. Arrumar gasta energia. Arrumar é meditar.

Pensamentos e estações: ambos mudam, e com eles vem a necessidade de revisão.
Se a cabeça está lotada de pensamentos imperfeitos e inconstantes é porque a coisa não vai bem. É preciso parar, reavaliar-se, tentar enxergar-se por um ângulo alternativo, que não aquele de sempre, quase automático, que repete o que está programado para ser repetido. É preciso estar a uma distância segura de si mesmo para poder fazer isso. É preciso olhar-se com olhos emprestados daquela que mora lá dentro e que constantemente é escondida e abafada dentro do próprio armário.

Abro meu armário desarrumado, suas duas portas. Dei dois passos para trás. Tá bagunçado. O que está precisando ser feito? Agora sim. Vamos lá, arrumar esse armário.