14 julho 2010

Duas curvas, dois pontos



Manhã na cozinha solitária. Ouço ruídos, há por lá o que fazer, mas finjo para mim mesma que não sei o que é.

A cafeteira tosse engasgada com seus vapores e a geladeira treme de frio. O avental sujo e amassado suspira e desmaia sobre o encosto da cadeira torta, de mal com tudo, que só escuta a parede.
O pão dorme na cesta e palha. O copo pede seu banho. Garfos, facas e colheres não se entendem na pia.

Paro no vão da porta, empaco por ali, desisto. Penso naqueles gnomos e um sorriso leve me pega só de um lado da boca. tenho uma idéia melhor. Pego meu caderno e caneta preta. Há muita manhã ainda e eu quero tentar novamente. Quem sabe não é essa a hora daquele anjo?

O silêncio por mim imposto na minha busca por inspiração cede ao barulhinho da chuva na telha transparente do vão de luz. Uma voz ancestral, apavorada, grita em minha cabeça:

- Veja só, voce não limpou os vidros! Quanto pó!!!

Assustada, largo imediatamente a caneta sobre o caderno e o caderno sobre a mesa. Saio alarmada em busca do pano e detergente. Chego àquele vão da porta e empaco novamente. Alguma coisa acontece e eu preciso voltar.

Volto e miro o olhar na janela suja. E vejo que há algo ali que não tinha visto antes: um desenho de um coração, feito com o dedo, no pó do requadro de vidro. Agora sorrio um sorriso por inteiro. Foi Anabela que rabiscou ali mais um desenho, ela não se cansa.

Anabela me salva, como tantas vezes. E me faz lembrar que tenho o seu amor. O amor de minha filha me faz esquecer o pano e o detergente. Não vou lavar o vidro, quero o pó, quero o coração e o amor de minha filha.

Eu gostava de desenhar corações. Eu gostava de desenhar. Hoje desenho pouco por não mais acreditar no que desenhar. Cresci. Perdi a crença nas figuras de criança. Minhas mãos só vestem o lápis para desfilar em traço disforme e distante. Rompi com a forma e a forma se fez invisível. Corações não são mais corações.

São só curvas, nada mais. Eu só uno pontos. Meu desenho tornou-se burocrático e sem corações.

Aperto caderno contra o peito e rezo pedindo ajuda. Eu quero, meu anjo, ah, como eu quero! A mão gelada aperta a caneta e quase rasga o papel. Meu coração quase para. Minha caneta aponta um caminho novo. Imito Anabela e desenho um outro coração no pó da janela. E outro coração na página do caderno.

Meu coração, na ponta da caneta, quer voltar a ter a velha forma.









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