10 março 2008

A casa da Vovó

A casa da vovó - e era assim que a chamávamos - ficava em um sítio em Sapucaia. A casa ainda existe naquela rua, mas certamente não é mais como existe em minha memória. Nela eu passei os melhores momentos da minha infância.
A casa era verde. Verde claro. E ficava em meio ao verde, cheia de árvores e sombras. Para quem ali chegasse, depois do rangido do baixo portão de ferro, a recepção era feita por rosas, bocas-de-leão, cravos-de-defunto, dálias e margaridas, num arranjo cuidadosamente despreocupado de canteiros. Besouros e abelhas, numa sinfonia de zumbidos davam as boas vindas. Mas entrar pela porta da frente era incomum. A porta da frente quase nunca era usada e só era aberta para gente muito estranha. Normal era entrar lá pela porta dos fundos.



O caminho para a porta dos fundos era a direita de quem entrasse pelo choroso portão de ferro. Ali, seguindo a indicação das orgulhosas e repolhudas dálias, seguia-se por um corredor que era ladeado pela casa e por uma cerca normalmente coberta por trepadeiras carregadas de chuchus. Antes da cerca, uma pequena faixa de jardim, onde reinava absoluto um pé de marmelo muito famoso e altamente ameaçador. Cada um de seus galhos, muitas vezes cobertos de meigas flores, prometiam castigos dolorosos a quem resolvesse infringir as leis da casa. Por isso, se entrássemos correndo por aquele corredor, logo abrandávamos o passo, em temor ao pé de marmelo.


A porta dos fundos ficava numa grande varada, a 4 degraus do chão. Nós a chamávamos de "área". A área era protegida por muros onde costumávamos sentar ou brincar. Havia um lavatório com um pedaço de sabão e uma toalha surrada que era usado sempre antes e depois da ordenha matinal.

- Mãe, onde vai ser o almoço de Páscoa?

- Vamos fazer na casa da Vovó, ali na área.

- Ôba!

- Tia Landa vai fazer sorvete!

- Ôbaaaaaaaa!!!



O único banheiro ficava fora do corpo principal da casa, e ficava ali na área. Isso era trabalhoso no caso de um aperto noturno. Vovô e Vovó tinham um penico em baixo da cama, e isso solucionava fácilmente o problema. Mas eu tinha preconceito, acho, não gostava da idéia de sentar-me ali naquela coisa gelada e móvel, no meio do quarto e em meio a olhares curiosos.

Ainda sonho com esse banheiro. Uma pia com um pequeno espelho comum, um vaso sanitário e uma banheira muito escorregadia. Todos brancos. Ladrilhos hidráulicos no piso, como os da varanda e da cozinha. Eu gostava muito de tomar banho ali naquela banheira, mas achava a janela muito grande. Sempre pensava que alguém iria me espiar ou entrar, e trancava a cremalheira. Fazia da banheira meu escorregador particular. Mas logo batiam à porta e tinha de encerrar a brincadeira. Banheiro não era feito para brincar, eu ouvia, muito inconformada.



Ali na área havia um pequeno corredor que levava ao poço, ao tanque de lavar roupas e ao forno de assar pães, bolos, roscas de polvilho e cucas. O cheiro de polvilho azedava o ar e misturava-se ao cheiro da lenha verde, do sabão do tanque que lavava os tarros de leite, do vazio e água do poço, das cinzas e do carvão. Aquela passagem era das que eu menos gostava, pois os cheiros misturados tornavam a passagem fedorenta, e as aranhas eram encarregadas da decoração das paredes. Mas vivíamos ali xeretando novidades, pesquisando tudo que fosse divertido e interessante. Vovó não gostava nada disso e corria a gente dali.



Pela porta dos fundos entrava-se num pequeno vestíbulo. À direita a cozinha, à esquerda despensa. Na cozinha ainda havia uma outra pequena despensa, onde havia um armário guarda-louça e guarda-comida. Entrávamos lá sorrateiramente para roubar guloseimas ou biscoitos guardados em latas difíceis de abrir. Mas nem precisávamos nos aventurar, pois a mesa da cozinha estava quase sempre posta com coisas para comer. A cozinha sempre cheirava a salsinha, tempero favorito de minha avó. Fogão à lenha num canto, fogão à gás no outro, uma pia rústica de granitina e a mesa ao centro. Da janela via-se o grande pomar das laranjeiras e bergamoteiras.



Dos dias de "carnificina" eu guardo imagens tenebrosas. Galinhas penduradas no varal, pescoço sangrando dentro de um bale de alumínio. Sentada em uma cadeira com seu avental dos horrores, mangas dobradas e ar muito sério, vovó arrancava vigorosamente as penas da ave degolada - por ela mesma degolada - deitada ao seu colo. Depois viria o cheiro da penugem sapecada no fogo do fogão a gás, na cozinha. Em seguida, entrava em ação a faca amoladíssima sobre a tábua. E os cortes, miúdos e a carcaça dentro da bacia, com os pequenos ovinhos, que brigávamos depois para "pescar" com a concha na perfumada e consistente sopa de galinha servida no almoço. Bom, a carnificina tinha lá suas coisas boas. Nas frias noites de inverno da casa que gelava, eram a sopa, os travesseiros e os acolchoados de penas que nos deixavam quentinhos. E isso era realmente compensador.



A horta ficava à direita, era um dos lugares favoritos, mas a vovó era cuidadosa e só deixava a gente entrar lá depois de muita recomedanção para cuidar onde pisasse. Quem fosse descuidado seria banido desse verdadeiro paraíso da salsa e cebolinhas, alfaces, couves, aipim e muitas, muitas flores. Até as galinhas xeretas sabiam disso. Nada de ir ciscar na horta. Lá as minhocas eram de estimação, assim como as lesmas (que chamávamos de caramujos), abelhas e besouros. Infelizmente as lagartas não eram bem vindas. Era preciso primeiro trocar de roupa. Como borboletas elas tinham livre acesso do espaço aéreo e autorização para o pouso em qualquer flor. E assim as cores se multiplicavam.


Além da moradia, havia pomares, cocheira, galinheiros, chiqueiro, horta, milharal e muito, muito espaço para brincar e soltar a imaginação. Detenho-me na descrição por pura necessidade. Há muitas sensações que vão além do que se via. O tempo tinha todo o tempo de ser, ali naquele pedaço de mundo. Todas as horas eram viáveis, todas as luzes e sombras aconteciam, todas as brisas e farfalhares de folhas eram ouvidos, todas as superfícies tateáveis existiam. A palha de milho, a massa de pão, o barro mole moldado, a casca dos troncos das velhas laranjeiras, o tramado das cestas, a serragem na chocheira, o fofo pêlo depois da tosquia das ovelhas, a pluma, as penas, o couro, a madeira, a aniagem, os ninhos, o orvalho, a geada. Tenho tudo isso guardado na memória da palma da mão e da ponta dos dedos.
Há muito mais o que contar sobre a casa da Vovó. As memórias se entrelaçam, vão se multiplicando, impossível colocar um ponto final. Mas páro por aqui por enquanto, para aumentar ainda mais a minha vontade de continuar.

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