29 agosto 2007

de volta ao bairro

Parece mentira, mas não é.

Caminho pelas ruas, olhos molhados e até meio fechados por causa daquele frio, e o frio que entra pelas narinas me indica - com uma espécie de alegria contida - que estou de volta ao bairro.
Ou será que o bairro volta a mim?

E quero olhar e olhar e olhar, como se pudesse fazer com que aquelas árvores nas calçadas e todas as outras da praça entrassem dentro do meu olhar, tão já desacostumado à elas. Aqui no bairro o verde está mais melancólico, mais escuro, e isso me incomoda. O inverno faz disso seu trunfo. Mantém o verde refém do frio, na cidade que é à beira de um rio de cor verde-agonizante. Mas a margem do rio está longe do bairro, que se dizia "nobre", mas cuja nobreza residia sómente na cabeça das imobiliárias e de seus moradores que se achavam nobres. Hoje, a velha nobreza decadente do bairro vê, através de suas janelas, que o mundo segue adiante, e há árvores e calçadas velhas como testemunhas disso.
Resgato meu bairro de um dia, para poder me achar novamente. Há os bancos da praça, em que sentava ocasionalmente, para estar mais presente à paisagem. A casa da esquina, o poste e seu fio tensor, as tímidas corticeiras da D. Vanda, as novidades das casas antigas reformadas, o quase-sumiço da rua Espiridião de Medeiros, as grades e aquele pretensioso edifício cinza-azulado no local onde havia o bar em que eu comprava jujubas.
E o barulho do metrô assustando os pombos. E o pinheiro torto, que indicava quando iria chover ou não. A paisagem se misturou à paisagem. Tudo, daqui da janela, cresceu nos detalhes. Me perco ao tentar assimilar tudo que vejo. Parece que há coisas...demais.
Sair dali foi tão fácil! Como pôde ser? E voltar está sendo muito, mas muito difícil. Perdido o contexto, quero entrar sem a chave que perdi.
E ainda, me parece, existe uma senha. Sorria. Voce perdeu o bonde. Quer subir? Cuidado com o degrau.

25 agosto 2007

Música na cabeça

Eu nem tinha escutado aquela, naquele dia. Mas ela estava lá, insistente, dentro da cabeça.
E nada de sair. Tocava direto, batucando aquele baixo, aquela risada maluca e aquelas micagens e "tosses"do SeuJorge...
"Sangue, sangue, sangue....
Chatterton, suicidô.
Curt Cobain, suicidô.
Getúlio Vargas, suicidô.
Nietzche enlouqueceu
E eu...
não vou nada bem."
Olhava pela janelinha embaçada aquela noturna paisagem da Bahia de Todos Santos, toda pintada de luzinhas piscantes, que se afastava cada vez mais, e aquela música lá dentro, repetindo e pulando.
Puxa, quantas outras músicas boas para um fundo musical existiam, mas aquelimplesmente não deixava que as outras existissem. Martelava, pululava, como um disco arranhado ou coisa parecida dentro da minha cabeça.
E até que comecei a visualizar as luzes do Rio de Janeiro a coisa foi assim. Sempre a mesma música.
Suicidô.
Suicidô.
Goya enlouqueceu...
e eu...
"Putaquepariu...não tou nada bem."

lavatory

Sentada entre dois completos estranhos, eu olhava insistententemente para aquele letreiro luminoso, logo acima, no estreito corredor.

"Lavatory" estava ali escrito, indicando que logo à frente havia aquele micro-banheiro, logo na entrada da aeronave. E eu estava cansada e apertada, queria fazer uma visitinha àquele cubículo, mas alguma coisa me prendia, me paralisava e não deixava ue eu levantasse da poltrona. E aquela cossissária japonesa de cabelos louros me indicava - ou me fazia intuir - de que alguma coisa estava fora do prumo. Comissária baixinha, japonesa e loura? Me poupe. Tem sapo nessa moita.

E eu ali, olhando o movimento. E o movimento em direção à casinha era grande. Uns quantos foram e voltaram, todos do gênero que não precisa sentar para aquilo. Comecei a imaginar a lambança, pois mesmo em aviões, e mesmo sem o avião balançar isso acontece: eles não conseguem acertar o alvo, não tem jeito.
Mas, mais do que isso, e mais do que o aperto em que eu estava, outra coisa me incomodava, que era o fato de ter que encarar todo aquele povo, na volta. Na ida, tudo bem, estariam todos de costas, e o que o olho não vê o coração não sente. Mas na volta, não. Todos, na maioria homens, estariam olhando e pensando "essa aí foi fazer xixi...coitada!" ou simplesmente "coitada!"...ou nem estariam pensando nada, só com o olhos curiosos me encarando quando retornasse da casinha.
Pensei em ir ao outro "lavatory", que ficava lá atrás. Mas logo me dei conta de que ficariam me encarando logo já na ida, o que poderia fazer com que eu ficasse, além de apertada, bloqueada. Aquilo me encheu de pavor sanitário. Desisti.
E eles continuavam indo e vindo. E a comissária japonesa loura sorrindo. E eu, desistindo.



16 agosto 2007

moonshadow




Moonshadow.


Lembro quando comprei esse livro ilustrado numa banca, só por causa das ilustrações, belíssimas, em aquarela. E nem sabia da existência da música, com o mesmo nome, e também belíssima, do Cat Stevens.









10 agosto 2007

nozes no meio da tarde



"Escondo-me do mundo,
nesta minha casca de noz.
O sol morreu em agonia
na ausência da tua voz.

Quero que o mundo te veja.
Eu ouço a tua ausência de voz.
O sol brilha forte e acima,
aquecendo a casca de nós."

do nosso tempo


"...prá lembrar quem eu sou,
prá salvar o que ainda restou
do nosso tempo...eu sei...
...que assim vou vivendo."

Temos um tempo que não vivemos.
Por alguma razão, ele existiu, mas o deixamos ir.
Abrimos a torneira e o tempo jorrou direto para o ralo, enquanto olháva-nos distraídamente no espelho, à procura de marcos iniciais do nosso passado.
E o presente escorria...

08 agosto 2007

poenosso de sexta

"ladrilhos" - ecoline s/painel - 1989

Não quero mudar,

não quero

manter!


E eu

que me vire

para poder entender!


(A primeira estrofe é da Jo. A segunda é minha.)

a língua aponta

Estava na ponta da língua,
mas só por estar na ponta, caiu.
Não consege-se achar.
E nem sabe-se o que era.
Só se sabe que caiu.
Estava na ponta da língua
esse tal precipício
que insiste nas bocas
mesmo cheias de cálcio e esmaltes
vaporiza o verbo desconectado
súbitamente.
Cai o cérebro, como cai a energia
num dia de tempestade radioativa.
E idéia, antes luminosa,
cai no espaço vazio
no esquecimento, na dobra do espaço,
em que nada acontece de fato.
Aliás, fato é o que não há por lá.
Lá, há só arte-fatos
desligados de suas nascentes
desconectados dos vértices
enredados nas linhas
da grande teia do inesperado.
casos e casos e casos
na ânsia de existir de novo
naquela ponta de língua.
Todos casos perdidos.

06 agosto 2007

inquietações ao vinho

Minha amiga Jo tem um "latifúdio labial" de dar inveja a qualquer uma, tanto na ação quanto na reação.
Ela me diz, antes de erguer a taça e dar um gole:
"O óbvio é imensamente grande e vazio."
Pronto. A discussão começa.
Mas antes, uma sonora gargalhada ecoa no ar, e brindamos à nossa qualquer coisa.
Qualquer coisa é motivo para brindar. Até o óbvio.