20 junho 2008

ganhos

Ouço Anabela cantar:

"Quando a chuva passar
quando o tempo abrir
abra a janela e veja eu sou o sol...
Eu sou céu e mar
eu sou seu enfim
e o meu amor é imensidão."

É claro, ela enrola a língua para algumas palavras que ainda não conhece, e "engole" outras, deixando os versos incompletos. O que é a imensidão? O que é enfim? Como alguém pode ser o sol, o céu e o mar?

Mas ela não se pergunta isso, ela apenas canta. Parece que as crianças não se preocupam tanto com as respostas, mesmo quando fazem as perguntas. E se há respostas, elas as aceitam tal e qual a gente as diz. "São apenas versos, uma poesia" - eu lhe digo - "imensidão é aquilo tudo que voce consegue ver, uma coisa bem grande".

Então seus olhos brilham e ela diz "Eu te amo mais que do tamanho da imensidão, mamãe." Não há como não encher-se de ternura. Não há como não aparecer aquele nó na garganta. Não há como deixar os olhos a seco ou os braços abanando. E a boca necessita beijar aquela face rosada que ladeia o meigo sorriso emoldurado por cachos castanho-escuros.

Parece que carinho demais dói, às vezes, uma dor que não incomoda, mas que faz a gente quase desfalecer.

Ela diz que eu a ensinei a cantar. E diz que quer ser cantora e bailarina. Sua voz de menina alcança todas as notas com precisão, ela soube ouvir antes de cantar, e não preocupou-se em questionar o que ouviu. Aprendeu e reproduziu como o soube. É assim e pronto. Quando lhe pergunto o que ela sente quando ouve a música, ela diz que gosta dela, que é bonita.

E será cantora quando crescer, ou mesmo antes, já que o tempo nem lhe faz cócegas ainda. Suas verdades são puras, assim como as suas dúvidas. O que é o tempo? O que ele faz com a gente? Como saber quando vai ser a hora?

Fecho os olhos, procuro a resposta. Gostaria muito de sabê-la para lhe dizer, mas lembro que a mim cabe mostrar caminhos para despertar vontades e habilidades. Eu mesma fiz tantas perguntas ao tempo, sem nunca saber as respostas! O tempo me poupou, fez seu mistério.

Nunca soube quando era a hora, fui tardia. Soube o que precisava saber bem depois. Com isso ganhei tempo do tempo. Um tempo a mais, precioso para ela, a menina dos meus sonhos, a quem o dedico agora.

09 junho 2008

Ai, Freud!

- Mãe, vem aqui que eu vou te apresentar o Pitanguy e o Tom Jobim!

E lá estava eu, encostada apoiada nos cotovelos no parapeito de uma espécie de ponte de pedra sobre um riachinho numa ilha paradisíaca, olhando para baixo a cena que se desenrolava sob o gramado de um lindo jardim tropical.

Pitanguy ria montado em um lindo cavalo acinzentado de crina branca e longa e Tom Jobim, de chapéu Panamá, camisa e calças de linho cru amarrotadas, se aproxima e passa a mão no seu focinho. Tom Jobim está de costas, não vejo o seu rosto, mas eu sei que é ele que está ali.

O cavalo ficou tão feliz com o carinho, que seu focinho levantou o Tom, virou-o de costas numa cabeçada cavalar e o fez cair estatelado no chão. Tudo isso em camera lenta, com direito a efeitos especiais tipo crina faiscante e reluzente esvoaçante. Ambos riam às gargalhadas do tombo espetacular.

E eu ali, no sonho, observando a cena. E nem sinal da Iris. Mas eu sei que ela estava lá.

Só em sonho, mesmo. Ivo Pitanguy, Tom Jobim e crinas reluzentes. E uma ilha paradisíaca. E minha mãe invisível. Quanta gente notável reunida em um só sonho!

Tentando fazer a relação entre os personagens desse meu devaneio inconsciente em alfa, o que eu poderia pretensiosamete concluir? Bom, resumindo prá não me alongar: Pitanguy é um renomado cirurgião plástico, Tom Jobim é músico brasileiro que fez história na música brasileira - e que já foi desta para uma melhor -, cavalo é um equino (hoje sem o trema em cima do "u" conforme as novas leis de acentuação da língua portuguesa) e mãe é mãe, mesmo que invisível.

E a ponte? E a ilha? E o tombo cavalar espetacular em camera lenta? E as gargalhadas dos notáveis senhores? O que tudo isso pode me sugerir?

Não vou me arriscar. É demais prá mim.

Ai, Freud!

03 junho 2008

Saio de carro pela manhã, cedinho, para levar Bernardo ao colégio. Cai uma garoa fina e faz um frio serrano, coisa fora do tempo e do lugar no mapa, mas um frio legítimo para aqueles todos que acreditam que ele existe como tal. É preciso ter fé até nisso.

Há silhuetas na rua, silhuetas com agasalhos improvisados e pés mal calçados que se movimentam com pressa de chegar ao seu seco destino. Sempre haverá um destino para todos, mas para alguns ele simplesmente estará em qualquer ponto ao seu redor. É tudo uma questão de magia. Enxergá-lo é pura magia.

Na descida da minha rua identifico com um olhar rápido aquele que já me é familiar. Lá está o Zé em sua caminhada de destino mágico. Magro, barbudo, metido naquele calção ordinário e naquela camiseta surrada, hoje ele se apresenta com um agasalho a mais. Alguma alma caridosa tratou de lhe providenciar isso, já que ele mesmo parece alheio à chuva e ao frio, o que me faz intuir que ele vive sempre num dia de sol.

De onde ele vem eu não sei. Para onde ele vai eu - acho - que ele sabe. E ele desce e sobe. Pára às vezes, treme as mãos e faz um ar sério ao olhar para algo que está ali, entre o seu olhar e o asfalto da rua. Não se convence, e ainda de cabeça levemente abaixada, olha para os lados sem ver ninguém ou nada que lhe diga coisa alguma. Gira o corpo uma vez, duas. Hesita, dá um passo, muda de direção.

E sobe de volta, com um semblante não muito convencido de que fez o que era o certo. No meio da descida ele pára novamente, olha para o chão, para os lados, hesita, gira, dá um passo na direção oposta, treme as mãos e o cabelo pinga em sua face preocupada, simulando lágrimas que ele talvez conseguisse chorar.

Há algo em Zé que me transtorna e me põe entristecida, além daquilo que deixaria a qualquer ser sensível também entristecido. Suspenso do que foi e da vida que é, ele existe como tal, ele está. Até quando?