27 fevereiro 2008

Os dedos de minha mãe

Os dedos de minha mãe estão tortos. Suas mãos envelheceram com ela e algo me diz que serei exatamente assim num futuro próximo. E eu, que sempre tive as mãos elogiadas pelas manicures diversas que habilidosamente as cuidaram, e até por alguns outros maníaco-observadores, entro em pânico só de pensar nisso. Minhas mãos, iguais às de minha mãe, com os dedos tortos.

Artroses à parte, as hábeis mãos de minha mãe fizeram e fazem história. Dali saíram obras de arte primorosas, sejam das que se come - primeiro com os olhos, depois com a boca - ou das que se veste/seca/enfeita. Tudo o que ela toca vira ouro, diriam, e é verdade. Ela é Midas, artesã de muitas ricas obras, escultora de sabores diversos para o corpo e a alma de quem tem o privilégio de estar ao seu lado.

Mãos trabalhadoras e pacientes, que escreveram com a desenhada letra de professora as provas e notas nas muitas cadernetas de anônimos alunos, dentre elas a minha, que aluna sua também fui. Mas os cadernos de receitas, meus preferidos, sobreviveram ao tempo, e deles ainda copio algumas. A mágica letra de minha mãe, caprichadamente inclinada á direita, indicando ingredientes e o modo de fazer alguns pratos que faço propositalmente me acompanharem aqui no auto-exílio.

Ainda vejo minha mãe bordar toalhas com seus dedos tortos. E nada do bordado me diz que eles estão tortos. A deformidade não atinge a alma da artista, ela ainda continua a executar as suas maravilhas. Diz ela que já não consegue mais fazer tudo o que fazia, o que discordo. A história dos muitos feitos estão gravadas ali naqueles dedos, e não é preciso provar nada a ninguém.

De mãe para filha, a herança. Mãos que tocam e transformam. Mãos transformadas pelo tempo, testemunhas dos próprios feitos, do qual todos irão lembrar e saber.

12 fevereiro 2008

Verões



Meus últimos verões têm sido pródigos de imagens coloridas. Não sei se é o amadurecimento ou o próprio sol que me fazem enxergar novas cores, ou mesmo velhas cores, que antes nunca notadas por um olhar ávido de novidades. Até mesmo as nuances do cinza me são distintas.
Afinal, o que mudou?
O fato é que comecei a escolher meus caminhos pelas cores. Caminhos que me digam algo através de um olhar caleidoscópico. Quero imagens para guardar na memória, que anda meio despovoada de de paisagens.
Quando foi que deixei de enxergar assim?
Acho que foi ao sabor do acaso. Ou da mesmice das minhas horas. Ou do leva-e-traz automático dos meus dias de mera transeunte do planeta Terra.
Agora escolho flamboyants flamejantes, chuvas de pétalas rosa-lilás, calçadas alaranjadas, crepúsculos dourados, capins verde-aveludados e nada menos do que isso.
Quero cores, muitas cores em minha vida, novamete.

09 fevereiro 2008

Mande Notícias

"Mande notícias", disse ele, virando-se para trás, antes de sair ziguezagueando com seu carrinho de compras pelos recheados corredores do super-mercado. Mas antes de ir-se, seus olhos caramelaram-se nos meus uma última vez. Ao virar-se, vi a meia-lua crescente bordada em curtos pêlos em sua nuca, sob o brilho do couro cabeludo limpo e uniformizado artificialmente.


"Mande notícias", e fiquei pensando que notícias eu teria para mandar para aquele cara que eu mal conhecia. Que tipo de notícias uma pessoa assim daria importância?



É claro, sem importância, por que as escreveria?



- Meu herói! - disse eu, levantando os braços para um eminente e forte abraço, caminhando em sua direção. Ele caminhava alegremente pelo ambiente da padaria do supermercado, e era só isso que eu via - ele caminhando, quase saltitando -, sem notar que o filho e a mulher estavam ali também. Ele me viu, sorriu e parou de soco. E recebeu e retribuiu o meu abraço sem cerimônia ou intimidação.

- "Meu herói" não...isso é exagero! - logo me corrigi, e ele prontamente concordou, rindo.

- Herói? Olhe minhas compras - disse ele, apontando para o carrinho.
Vi uvas e biscoitos - e, talvez, não lembro bem, papel higiênico - e lá estava o menino, sentado dentro do carrinho, com um olhar visívelmente incomodaddo pela minha presença inoportuna no seu passeio com a família.

- Sim, coisas que todo mundo compra - disse-lhe eu, ignorando a cara feia do guri, e acrescentei - Esse é o seu filho, né?

O menino não mexeu um músculo do rosto e agarrou-se com mais força às bordas do carrinho.

- Isso, o que todo mundo compra - ele disse.

E do resto eu não lembro bem. Conversamos reservadamente, cada um em seu espaço programado para só falar superficialmente. Olhava seus olhos caramelados e o contorno da cabeça, que me pareceu estar ainda mais liso do que a primeira vez. Queria que ele dissesse o que?

- Voltaste ou veio só passear? - ele perguntou.
- Só passeando, de novo. - respondi.
Aí ele se curvou a minha direção, o que deu ênfase ao proximo comentário:
- Acho que voce já está voltando.
Eu ri e fiz nem sim nem não com a cabeça e olhar. Ele acrescentou, com o olhar ainda mais caramelado no meu:
- Tu vai ser a nossa vitória!

Nossa!! Tremi na base, no caule, galhos e folhas. Derrubei os ninhos e enrolei as pipas. Fiquei ali, sem dizer coisa com coisa. Arrisquei, finalmente um "quem sabe?", e aí ele puxou o carro com a família, que já o açoitava com o olhar, para que andasse e deixasse os chatos prá lá.

E ele foi. Só que pediu para eu mandar notícias. E aqui estou eu, tentando organizar meu pensamento e fazer o que ele me pediu.

Por que insistimos em fazer heróis? Isso torna tudo tão mais...difícil!