03 outubro 2012

Ora direis ouvir...raios e trovões.

Ora direis ouvir o que não disse. Ora direis ouvir um "não, não é isso que voce está pensando". Ora direis ouvir e tentar entender o que pudesse, mesmo que ouvi-lo não significasse nada, uma vez que não é dito olho no olho. Ora direis ouvir eu te amo como se leva a taça vazia à boca...ora direis ouvir um eco vindo daquela fenda do tempo que se abriu quando ali
 se esteve, e ali não se viu passar, mas que ali estava e ali ficou, sabe-se não onde, nem quando...ora direis ouvir o som do cansaço da solidão, ora direis ouvir o estalo do espelho que se quebra. Ora, direis, não sou mais do mesmo, não sou mais aquela que queria tanto e que teria tanto e que amava tanto e que sonhava demais outro tanto.

Ora direis ouvir migalhas inventadas a troco de água..Ora direis ouvir a flor que murcha e despenca. Ora direis ouvir o tempo que finda na vidraça da janela...ora direis ouvir uma abelha que zumbe...

Ora direis ouvir (lá, bem longe ainda) um novo começo,que começa só com uma mínima vontade...

Ora, direis, ora bolas..."e o coração na curva de um rio um rio um rio um rio..."

02 agosto 2011

Arrumação



Às vezes eu preciso de sómente um tempo. Um tempo comigo mesma, e mais ninguém por perto. E isso, urgentemente, como se disso dependesse o meu saldo de vida, como se isso fosse uma espécie de purificação interna imprescindível, uma reavaliação,um rearranjo, uma releitura, um balanço. Tá tudo desordenado, é preciso fazer como minha mãe fazia, ao ver meu armário todo bagunçado. Eu chegava, na volta da escola, e tudo estava vomitado para fora, no chão.

Eu ficava muito puta da vida. E o primeiro pensamento que me vinha era que minha mãe fazia aquilo só para me irritar. E não tinha perdão, era arrumar ou arrumar tudo de volta, que ela vinha com tudo depois para fiscalizar. E eu arrumava meu armário a contra gosto, como se fosse um castigo - que eu até achava que merecia - sem entender por que precisar fazer aquilo daquele jeito e por que minha mãe se irritava tanto com aquela minha, digamos assim, baguncinha, até porque ao fechar as portas do armário, tudo parecia legal, limpinho, ok.

Mas ela abria e fazia a tal inspeção. E tudo ia parar no chão. Houve uma vez - e que eu lembre, foi só uma vez - que os sapatos iam parar no jardim, atirados através da janela. Só se salvavam os cabides vestidos, bem pendurados, bem comportados, mudos e certamente paralisados de horror. É claro, eu não gostava de ver tudo jogado ao chão, gostava de minhas "coisas" do jeito que eram. Gostava porque era...fácil deixar como estava. E eu deixava acumular, todo dia contribuía para que o bolo de roupas aumentasse, com o meu total desleixo de adolescente bagunçada.

Não sei se minha mãe fazia isso com esse intenção, ela queria me educar, que eu me organizasse em meu espaço e provávelmente ela mesma já havia descoberto que isso fazia bem. Prefiro pensar assim, hoje, quando tenho a idade que ela tinha naquela época, mesmo sabendo que quando ela fazia isso ela não estava bem com ela mesma e queria que eu arrumasse o meu armário também por conta de outros sentimentos mal arrumados, que não eram nem um pouco meus. Eu estava legal, pouca coisa me incomodava na minha vidinha, minhas pequenas responsabilidades não me exigiam quase nenhum sacrifício.

Então eu arrumava a bagunça. Não tinha outro jeito. Mas, ao final, ao ver tudo arrumado, eu ficava satisfeita comigo mesma. A metáfora da arrumação de armário e muito boa.

Arrumar-se é bom. Falo de arrumar-se por dentro, quero dizer. Bom é parar com tudo, parar mesmo. Largar tudo e focar em si. Como é que estou por dentro? Aquela que mora dentro de mim precisa de ajuda? Aliás, onde é que ela está mesmo? Ela estava aqui da última vez que a vi...para onde foi? Olho o meu espelho, posicionado estratégicamente ao lado do armário: estar arrumadinha por fora não quer dizer que aqui dentro esteja tudo bem...

Arrumar-se como se arruma o armário cujas portas e gavetas não fecham, de tão lotadas de coisas dentro delas...e que se abre todos os dias, automáticamente, ve-se seu conteúdo transbordando, e nada se faz, por falta de vontade ou mesmo de tempo. Tá, sei, é mais por falta de vontade mesmo, por desleixo. Lembro que até calcinhas sujas eu lançava para dentro do meu armário, uma legítima porquinha. Tenho coisas "sujas" em meu armário, preciso levar prá máquina de lavar. Tenho roupas que não me servem, tenho que doar. Tenho roupas e sapatos estragados, tenho que mandar consertar, reciclar.

A metáfora do armário é mesmo ótima, não? Guardar coisas inúteis...um grande desperdício de energia. Opa, há alguém dentro dessa gaveta, pedindo socorro...minha mãe pedia socorro e eu não entendia. Ela estava com seu armário arrumado, mas os problemas que enfrentava eram grandes, era preciso mais armários desarrumados para arrumar. Arrumar acalma. Arrumar gasta energia. Arrumar é meditar.

Pensamentos e estações: ambos mudam, e com eles vem a necessidade de revisão.
Se a cabeça está lotada de pensamentos imperfeitos e inconstantes é porque a coisa não vai bem. É preciso parar, reavaliar-se, tentar enxergar-se por um ângulo alternativo, que não aquele de sempre, quase automático, que repete o que está programado para ser repetido. É preciso estar a uma distância segura de si mesmo para poder fazer isso. É preciso olhar-se com olhos emprestados daquela que mora lá dentro e que constantemente é escondida e abafada dentro do próprio armário.

Abro meu armário desarrumado, suas duas portas. Dei dois passos para trás. Tá bagunçado. O que está precisando ser feito? Agora sim. Vamos lá, arrumar esse armário.


28 julho 2011

Ora, xícaras!


Ganhei uma xícara de presente em meu aniversário. Uma xícara alta, esbelta, com belos desenhos exotéricos impressos em tons de laranja, amarelo e azul, representando o meu signo, capricórnio. Gosto dela, tem uma boa alça, é de louça com a borda fina, nada a ver com essas xícaras de bordas grossas, que deixam a gente queimar os lábios quando o líquido está muito quente. Com a borda fina a gente logo sente a temperatura do que está dentro.

Xícaras. por que falo de xícaras? Ora, foi o objeto da hora. Estava ali e eu aqui.


Queria escrever, voltar a escrever. Me atenho àquilo que está mais próximo de mim, para procurar algo que está longe. Se eu escrever sobre a xícara, coisa simples e corriqueira - e sem graça - talvez minha cabeça comece a funcionar novamente. Minha cabeça está meio gelada. Minha cabeça está pobre de idéias. Minha cabeça está muito cheia de vazios desconectados, câmaras estanques, sem comunicação. Meus neurônios só se espreguiçam.

Então que resolvo escrever o que me vem à cabeça, nesse espreguiçamento neuronial. Neuronial existe? Sei lá. Nem vou pesquisar. O importante é que estou aqui, olhos fixos no teclado. Não deveria nem ler o que escrevo, prá não me atrapalhar. Idéias, o que são, afinal? Idéias seriam faíscas, como aquelas que pairam e dançam acima de fogueiras, acesas - ou não - em dia de folia de São João. Idéias vem e vão. Idéias somem de repente e igualmente aparecem.

Martha M escreve na sala, no meio de tudo. Duvido. Será que ela escreve com a tv ligada no x-games, com aquela narração das manobras em portunglês? Será que ela escreve quando tá de TPM? Será que ela escreve com a filha à sua frente tagarelando meninices, coisas de bonecas e panelinas, pedindo para jantar sanduíche com nescau?

Hoje me sinto horrível. Me sinto cinza.

- Gostou da roupinha dela, mãe?
- Olha meu cachorrinho, mãe!
- Gostou do biquini dela, mãe?
- Adivinha, mãe, o que é que eu tenho nas mãos?
...

Levanto a cabeça, olho por cima dos óculos. Faço aquele ar de "interesse". Respondo a todas as perguntas usando sómente duas palavras. São 10 e tanto, quase 11 da noite. Eu tento. Marta M, se me visse agora, o que me diria? Vou fazer um chá. Vou voltar para a minha xícara amarela.



30 junho 2011

tevlando derto



Há dias reclamo do meu teclado. Algimas letras brancas - o teclado é preto, e não cinza - se apagaram, e muitas palavras são digitadas com pequenos erros. Troco o "o" pelo i, o "u" pelo "o", o i pelos dois. Do "v" só vejo as pontinhas. O "t", só im ladinho da barra de sima da criz. O "d" já se transformoi em um ponto branco. O "g" vitou um "c", o qual nem sei se ainda existe. I "y", ympávido, emblemátuco, chama a atenção popr estar inticaso. Ele resiste. Mas é fácil sacer o porque.

Se eu teclar direto, e não crrigir que escrevo, o tecto ficara assim.

Tenho a ipção de corrogor, é claro. O texto ficaria pefeito.

Mas eu me pergunto: eu quero?

Cinto com sua compreensão, amigo. Algumas coisas também se apagaram na minha memória. devo pedir desculpas por isso? É involintário, eu garanto. Pensamentos se apagam, lembranças se apagam. Fico aui, querendo que elas me voltem, assim como quero que as teclas apareçam novamente...

Conto com sua compreensaõ. Vou errar muitas vezes, teclando em teclas que se apagaram.

01 fevereiro 2011

Suxi-abacaxi



Terminei de ler o livro que estava lendo, Sushi, de uma escritora que agora não me lembro bem do nome, mas isso não importa.
Começou muito chatinho, cheio de apresentações muito maneiras e diálogos igualmente maneiros. Parei de ler, larguei de mão. Não me prendeu à leitura. Tres (tres!) personagens femininos, cada uma com suas características pessoais, etc e tals, cada uma com sua estória de vida, todas jovens e magras, uma solitária que gosta de ajudar todo mundo, outra lindona e mau caráter e outra bem casada e cheia de problemas existenciais, e tudo isso ainda acrescido de uns outros coadjuvantes, como o amigo humorista, a maluquete ninfomaníaca mística retardada, o bonitão misterioso com têmporas grisalhas e peito peludo, o humorista sardento que distribui o número de telefone para as meninas e tantos outros. Muitos personagens para o meu gosto. Muitos. E o ambiente é daquele tipo que todo mundo quer comer todo mundo.
Normal.
E agora me lembrei da Martha M sendo entrevistada pela Marília Gabriela, dizendo que ela escrevia em um cantinho em plena sala, com a vida andando atrás de si, filhas conversando, empregada limpando, telefone tocando, pizza chegando na porta da frente. Como pode? Quero dizer, como é que ela consegue? Simplesmente põe em off o botão e desliga-se do cotidiano? Isso se aprende como? Quero prá mim também. Quero desligar da minha realidade e inventar-me outra.
Como no livro eu talvez pudesse ser Lisa, a lindona magérrima mau caráter de pele de gueixa, que só vai ao super para compara 7 maçãs. Não, estas aí não são para os 7 anões, e sim para serem comidas uma a uma nos 7 dias da semana, juntamente com 7 latas de suco ligt e 7 pecados em forma de chocolate. Talvez eu roesse 7 unhas também, para complementar o cardápio de tédio total. E a moça é do tipo que se acha, e que o resto todo dos personagens que interagem com ela é ralé. Não, é claro que eu não escolheria essa.
Talvez fosse aquela outra, também linda e magra, Clodagh, que tem um simpático lindo louro de olhos azuis musculoso e bem sucedido nos negócios como marido e duas pestinhas como filhos. Mas esta não me atrai, não sei por que. Deve ser os filhos, já passei dessa fase...ou o nome, que é difícil de pronunciar. Até hoje eu não sei qual a pronúncia disso. O marido louro...bem, deixa prá lá. Também já passei dessa fase.
E teria também a oportunidade de ser a boazinha e depois depressiva Ashling - aliás, todos nomes muito fáceis de pronunciar, não? - , chamada de senhorita quebra-galho pelo bonitão grisalho e peludo, que, por sinal também gosta de pegar numa chave de fenda. Aqui com e sem trocadilho. Sim, vou estragar a leitura de alguém, os dois ficam juntos no final, caminhando pelo pier e falando sobre sushi. Talvez essa seja a que mais me atraia. Mas só por causa do pier, que fique aqui bem entendido. Ah, e eu gosto de sushi e homens que pegam em chaves de fenda, com e sem trocadilho.
Olha, cá entre nós, há ficções que são fictícias demais para eu engolir. E até pouco tempo atrás eu mesma comer sushi era pura ficção.
Voltando ao livro, eu ainda não sei o que mais me repeliu nessa leitura. E nem sei por que botei aqui nesse entremeio a Marta M. Acho que eu penso que ela, assim como eu, não deve ter achado algo de interessante nesse livro, fora a acidez. O livro deveria chamar-se "limão" ao invés de "sushi". Mehor seria até "abacaxi", bem mais apropriado.
Vou ali tomar um Eno e já volto.

08 dezembro 2010

O vestido do momento




Ela escolhera o vestido na véspera. Queria parecer leve, descompromissada, isenta daquela sobriedade da cor neutra, até porque desistira de vez - por uma resolução simples, mas definitiva - de ser aquela a qual todos olhavam mas nada viam. Queria estar com a leveza da cor e que essa cor deixasse claro a todos que ela havia mudado. Não por causa da cor, mas pelo fato de estar vestida dela e de não ter medo dos efeitos que ela pudesse provocar. Tudo questão de uma modesta estratégia.

Só não escolhera o vermelho, detestava obviedades. O vermelho seria leveza...demais. O vermelho a deixaria fácil, e isso seria um desastre. Queria criar uma certa dificuldade, um mínimo de mistério, uma leve camada protetora. Sim, a cor escolhida a protegeria na chegada, e no desenrolar do encontro sutilmente a revelaria, mas não a tal ponto de ser totalmente compreendida. Tem coisa mais sem graça do que ser totalmente compreendido? Alguém já havia dito isso...

Bom, pelo menos era isso que ela queria. O controle de si pela cor. Como uma camuflagem, para esconder aquilo que não interessava naquele momento. Difícil, já que o que se ve no primeiro instante - e aqui há controvérsias - sempre é a forma, e não a cor. Mas ela tentaria driblar isso, tentaria sim. Muito melhor do que desistir e deixar-se decifrar por falta de cuidados consigo mesma. E a hora era de cuidadoso planejamento, nada poderia ser feito por impulso.

Assim, escolheu cuidadosamente o vestido. Um tecido acetinado e fino, porém encorpado, que não deixasse revelar a sua forma, da qual ela - diga-se aqui de passagem - últimamente não se orgulhava nem um pouco. O tecido floral, em tons de rosa-azul-laranja-violeta, com pequenos pontos verdes fazendo vezes de folhas das flores pinceladas, lhe caia bem e lhe promovia o tom rosado da pele há muito longe do sol.

Desaprovara somente a falta de mangas para lhe cobrir parcialmente a grossura dos curtos braços...mas o que fazer? Os joelhos robustos à mostra lhe eram até toleráveis. "Para encompridar as pernas curtas grossas, deve ser usado um calçado cujo tom seja próximo ao tom da pele", ela lera em uma revista de moda. Para o rosto, havia a maquiagem. Os fios brancos se tingem com uma boa tintura para cabelo. As mãos já marcadas ficariam joviais com unhas pintadas. Mas os braços grossos ela não tinha como disfarçar.

"Feche os olhos. Pense bem de voce."

Em frente ao espelho, ela fechou os olhos. Antes de abri-los novamente, ela sorriu largamente para dentro de si. Olhou seu reflexo com simpatia e lá estava a imagem que ela gostaria que todos vissem.

"Eu sou assim agora, este é o meu corpo de agora. Não importa mais o que eu tento esconder. "

Na verdade, naquele dia, ela tornara-se aquele vestido.

A pedra azul


Sexta-feira, dia de faxina. Ou, pelo menos, era assim que era lá em casa, há muitas anos atrás.

A função de arrumar e limpar era grande, assim como a casa. Todas as pesadas persianas eram abertas, cortinas eram recolhidas e levantadas. Eram muitas camas para livrar dos lençóis sonolentos de uma semana inteira de preguiça e muitas toalhas murchas e descoloridas que tinham que ir para o banho a máquina. Não lembro quando foi que minha mãe começou a lavar roupas à máquina, parece que essa coisa sempre existiu em nossa vida. Que bom. Minha mãe que o diga.

O varal se transformava em labirinto e era ótimo para se fazer jogo de sombras, atrás dos lençóis estendidos. O perfume do sabão em pó era gostoso e se misturava ao perfume das madressilvas presas à grade branca da janela do nosso quarto. E agora lembrei-me que tia Dulce usava aquela pedrinha azul, o anil, para deixar as roupas mais brancas. E eu nunca entendia qual era a mágica daquela pedrinha, que manchava meus dedos e soltava uma tinta azul na água do balde. Se era azul, como é que a roupa ficava branca?

Mas eu não perguntava para ninguém o porque disso, eu simplesmente não tinha tempo. Interesse sim, mas meu tempo era tomado por novas e novas perguntas. Uma pergunta se sobrepunha à outra, e quase todas ficavam sem respostas. Não queria parecer boba. Eu fingia que nem ligava, também não tinha tempo para me importar com perguntas sem respostas. Uma ida ao quintal com um varal cheio de roupas penduradas já me deixava com a cabeça fervilhando de idéias e inquietações, todas misturadas umas às outras.

Hoje a minha casa está uma bagunça só. Há lençóis e fronhas para serem trocados e toalhas para irem para máquina de lavar. Penso em minha mãe, minhas tias, minha avó. Tanto trabalho, tanto trabalho! E mesmo com a máquina, tanto trabalho! A máquina só sacode, parada em seu canto. Ela não desfaz, não carrega, não estende nem tampouco mistura isto a tantas outras tarefas domésticas. A máquina não reclama, mas, de repente, pode parar. E aí é pane na certa na área de serviço. Assim como a minha cabeça, que também anda bagunçada. Mas funciona. E também pode parar, e esse tipo de pane é bem mais séria que a da área de serviço.

Vejam só o tamanho de meu devaneio. Estou aqui, entre quintais, lençóis, pedras azuis, perguntas sem respostas, minha mãe, tia Dulce e suas vida trabalhosas. E me parece que só agora arrumei tempo para procurar respostas...o que me preocupa muito. Mas as perguntas não param, mesmo com a maturidade. Só que hoje eu acho que não me importo em parecer boba ao fazer perguntas. Eu pergunto, eu questiono. E não perco essa mania, isso sou eu, uma dúvida ambulante.

29 novembro 2010

Num segundo




Atravessou a rua caminhando rápidamente e desviando-se cuidadosamente das pequenas poças de água. Era tarde de um domingo qualquer e chovia.

Um insistente zumbido na cabeça lhe inquietava. Pareciam vozes lhe sussurrando "olhe isso!", "olhe aquilo", fazendo com que ela se confundisse e esquecesse do que ia fazer do outro lado da rua. Piscava muito, apurava o foco, tentava enquadrar as imagens, tentava manter a calma: inútil. Olhava seus pés molhados e sua cabeça ficava em estado de alerta para tudo que acontecia, sem saber exatamente o que acontecia.

Levou um susto, parou e esperou um carro passar, apressado. E isso foi num segundo. E só um segundo foi necessário para que muitas coisas acontecessem.

Uma folha caiu. Um pássaro arremeteu-se em seu voo. Saía fumaça no chaminé da pizzaria. O amarelo das paredes havia desbotado. O aroma da chuva que escorria sobre o asfalto. O grafite brilhante dos guarda-chuvas. A palidez de Madalena, e suas costas arqueadas. O barulho do cadeado sendo aberto. O ronco do motor, o portão de ferro que abria, o alarme que disparava. Os anúncios nas faixas na marquise da locadora. Seu botão da blusa, aberto, deixava parte dos seios à mostra. As estreantes e piscantes luzinhas de um natal prematuro que se anunciava na janela do quarto andar. E o morador do quarto andar a observava através da janela piscante, fumando solenemente seu cigarro.

Isso tudo no tempo de esperar o carro passar, antes de atravessar a rua.

Um grosso pingo caiu, escorreu em sua cabeça e depois em sua testa. Levou a mão ao rosto e se livrou daquela lágrima celeste. Gostava de pensar que não havia nada entre o céu e sua cabeça, mas o vento frio lhe lembrava o quão vulnerável isso podia vir a ser. Ela pensava: "Minha cabeça, seu salão de baile. Minha cabeça, minha tortura. Minha cabeça, minha nuvem. Minha cabeça, minha confusão."

"Voce é o que voce pensa".

"Minha cabeça, meu problema."

O carro passou, e ela chegou enfim ao outro lado da rua. Sem sorte, pisou em falso em um buraco, desequilibrou-se e quase - quase! - caiu de joelhos. Sua cabeça, afinal, ainda tinha espaço para o instinto, e ela endireitou o corpo e o passo. Muitos outros pingos agora escorriam pela sua testa e ela nem se importava mais. Precisava do frio, do gelo cortante da chuva para acordar e ficar ainda mais atenta.

Tudo era digno de registro. Tudo acontecia em um segundo. Coisa muito importantes acontecem em um segundo.

Um segundo em sua vida valia ouro.






17 novembro 2010

Perto da lua



Ouço o que voce não ouve
vejo o que voce não vê.
Não há mal nisso
Há formas diferentes de chegar
ao mesmo lugar.

Vê? Lá em cima há
aquele lugar
bem perto da lua.
E a lua chama a subir...

Na hora da partida
eu fui e voce ficou.
E isso fez de voce
refém de si mesmo.

É pena.

Nosso lugar existiu
Entre issos e aquilos
mas o tempo de espera
e o destino
apagaram todas as trilhas.

Resiste, porém,
uma idéia.
Insiste, talvez
uma certeza.
Nada mais é sempre um
nada a mais.

E aqui cabe uma tristeza
quase infantil
de saber que ao final de tudo
ninguém mais lá
vai estar.

23 setembro 2010

Outro setembro



Minhas esperanças em setembro se repetem ano após ano. Sempre são as mesmas. Esperanças gêmeas, porém atemporais. Como explicar isso?

Eu e minhas perguntas. Meus botões fecharam a boca há tempos, não se arriscam a palpitar. E o calendário me diz que setembro já está para lá da metade e há pouco de setembro ainda para conquistar. Mas os dias que aí vem são muito preciosos, é preciso muita dedicação e paciência. Ora, me vejo querendo atrasar o relógio...querendo parar o tempo...stop, setembro! Quero a câmera lenta, quadro a quadro. Minutos - até segundos - em setembro valem ouro!

Ontem vesti uma camisa verde que nem me lembrava, presente de uma amiga de além-mar. Ela estava esquecida, dormia na gaveta, esperando a chance em meio aos cinzas. Olhei-me no espelho e gostei do que vi. Sorri para minha imagem esverdeada, um tanto quanto amarrotada , respirei fundo, e aquilo me encheu de vida.

Imaginei-me galhos, flores, perfume, altura, movimento, fotossíntese. Imaginei-me ar puro, renovação. Imaginei em meus dedos ninhos ao invés de anéis.

Imaginei setembros pairando sobre minha cabeça, enfeitando meu cabelo leve e a insustentável leveza da minha imaginação.

Setembros foram feitos para sair da casca. Setembros são a porta de saída. Setembros são gritos de liberdade. Setembros são feitos de flores e perdão. Setembros são fáceis. Setembros são simples. Setembros são elos entre o que foi e o que será, sem necessáriamente que o primeiro seja decorrente do último.

Ontem, em setembro, vesti aquela camisa verde. Prendi uma flor colorida logo acima do coração. Pronto. Agora sou, além de árvore, um jardim.

(em construção...)

23 agosto 2010

mínima história



Manhã sem pressa. Como um milagre, há sol por entre os requadros da janela. Em cada requadro um brilho diferente, uma cor a mais no tapete branco e sujo da sala. O acolchoado de flores vermelhas, dobrado, descansa sobre o pufe. Sobre ele, os gatos escolheram deitar-se e fechar os olhos na direção do sol. Para o gato, sol é para sentir no pelo.

Lembro de abrir o armário e ventilar os pesados casacos de inverno. Há muito não veem a luz do sol, nestas semanas de chuva e frio. As portas, abertas em par, os expõem em seu sono. Dormem os casacos, presos pelos ombros, braços caídos, golas semi abertas, bolsos desprotegidos. Como fica estranho eu levá-los a passear sobre esse sol, eu lhes faço carinhos. Meus casacos são como meus guardiães, meus anjos sem asas.

E só eu entendo os meus bolsos.

Procuro nos bolsos dos meus fiéis casacos bilhetes, farelos, tickets, papéis de balas e outras pistas de felicidades esquecidas. Aqui e ali encontro moedas sem brilho, trocos quase sem valor. Mas há os bilhetes do cinema, do último e já tão distante show no Theatro, um guardanapo com um número de telefone de uma tal Vanessa que nem lembro...ah, sim, uma mãe de uma amiguinha de Anabela, naquele aniversário, que sentou-se à mesa comigo e só parou de falar quando começou a comer.

Um brinco sem par. Uma miçanga. Dinheiro! (Ah, só uma nota de dois reais, dobrada e cheia de rabiscos de caneta...) Um lenço de papel usado. Tic tacs. Uma nota fiscal de padaria. Um halls todo melecado. Um batom sem a tampa, que borrou o bolso por dentro. Ingressos da última terça de cinema. Um buraco. Um buraco no forro! Pode até ter escapado algo por ali...hum. Apalpo o casaco e ele gosta. Sente cócegas. Ri um riso de lã, abafado, contido.

Hum. Meus casacos não reclamam meu roubo de seus pertences. Mas certamente eles se sentem bem mais felizes com eles. Fazem parte de suas personalidades, tanto quanto seus botões e golas. Hesito, coloco tudo de volta. Não quero mais que eles se sintam vazios de minhas andanças. É disso que eles sobrevivem. Além do mais, eles sobreviverão a mim.

Assim, é preciso que hajam pistas, muitas delas em meus bolsos. Para que uma mínima e importante história possa ser contada. Papéis, doçuras, grampos de cabelos, caixinhas de chiclets, borrachinhas, cartões de visita. Fios de cabelos. É preciso que os bolsos sussurrem, assoprem, suspirem esses acontecimentos. Tudo é importante. A cada ticket, a cada papel de bala amassado, um capítulo é escrito.

E se eu colocasse ratoeiras nos bolsos dos casacos? Para que eu, num dia de distração, volte a querer controlar a vida de meus casacos e seus bolsos. Seria um grande susto, eu sei, mas seria o aviso, o alarme soando..."pare, deixe como está", "lavanderia, não!!"...

Agora sim, a manhã começa a acontecer na minha cabeça.

12 agosto 2010

Quando

Queria que hoje fosse amanhã.

Não deixes para amanhã...não é mesmo? Pois eu deixo. Deixo que o momento passe, lego todos meus melhores pedaços de vida para os melhores dias que virão. Pois dias melhores virão, me dizem isso a toda hora. E eu sou uma crédula de carteirinha, tenho fé em frases feitas e ditados populares. Quero o meu amanhã intacto. Quero ser a primeira a tocá-lo. Like a virgin. Quero inaugurar meu amanhã com todas as honras.

Quero o meu futuro do tipo de que todos dizem "amanhã passa" ou "amanhã sara". Quero passar ao meu futuro zerada de ontens, quero que o que é para ser passado passe logo e que logo eu chegue ao meu futuro. E uma vez com o meu pé lá, não quero mais voltar. A felicidade no futuro é uma felicidade sem pressa de futuros onde tudo passa.

Não existe o futuro certo, só palpites incertos. Toda a noite eu tranco a porta e fecho as janelas, pensando em voltar a abri-los no meu futuro. E o futuro que acontece a cada manhã me promete um novo futuro: "não, não é bem esse", penso eu. Minha esperança, mágica, se ressente: "há futuros e...futuros. Esse que vejo agora aí fora, nestes tons infames de cinza, não é o meu futuro".

A dúvida - que sempre me permito ter nestas horas - escolhe caminhar no lado mais ensolarado e mais divertido dessa questão. A dúvida me traz novas luzes a respeito do meu futuro. Quando será que ele vai chegar? Vai demorar? E, quando chegar, como vou saber? Terei algum sinal especial? Acho que as cores do meu futuro serão mais luminosas...

Bom, só sei que desejo uma coisa: desejo que meu futuro, esteja onde estiver, seja leal ao que eu planto aqui no presente. Sou paciente, sei esperar. Enquanto isso, planto boas sementes, das que eu colhi no meu canteiro na última safra. Como eu disse, sou crédula e acredito na vida que depositei em cada uma dessas sementes.

Sei que chegará o dia em que vou abrir as janelas e meu futuro estará lá, nascendo junto com o sol. Um futuro do tamanho do meu sonho, sem pontas e nas cores que gosto. E que ele me caia bem.

10 agosto 2010

Tapas de Clarice




Leio um conto da Lispector antes de dormir e me deparo com algo que me atinge em cheio, como uma palmada no rosto:

"E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras..."

Progresso. Frágil produto. Muitos cuidados. Algumas mentiras.

Em seguida, leio o complemento da frase:

"...tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio."

Tudo. Refazer. Quase.

Comigo é assim. Levo tapas e tapas de Clarice a todo instante, a cada página.

Acho que Clarice me lê, e não eu a ela.


08 agosto 2010

Só mais uma




Hoje, dia institucionalizado para festejar a existência de um pai, lembrei-me do meu, que já não está perto dos meus olhos. E não é porque hoje se comemora isso, mas aqui bateu uma grande saudade desse cara. Coisa natural, "a saudade é o amor que fica" - li isso por aí - e eu amava demais o meu pai, como toda menina ama um pai. E a minha saudade tem um coração que bate forte, a minha saudade grita alto, a minha saudade acena, pede para eu parar tudo e escrever sobre ele.

Tenho quase cinquenta anos e muito dele eu vejo no meu espelho. Nem falo do que vejo de fato, aquilo que eu posso tocar com a ponta dos dedos, apesar de sabê-lo. Falo da imagem que eu própria construí, baseada nele, físico e alma. E dele eu herdei o olhar caramelado-esverdeado que sorri e que enxerga coisas invisíveis, as bochechas salientes que seduzem mesmo sem querer, o toque artístico possível das coisas ordinárias, as manias do fazer com as mãos e de achar que tudo pode ser diferente. Também vejo que trago em mim aquela sua melancolia irremediável e flutuante que por vezes afasta de mim a minha - ou a nossa - verdadeira essência.

Meu pai, um cara de essência alegre e jovial, era alto. E quando se é pequeno os altos parecem gigantes. Ele era um gigante. E aos seus trinta e poucos passava uma imagem bonachona. Gordo e forte, mãos grandes, a única vez que senti a sua raiva num tapa em meu traseiro de criança foi lá pelos meus 5 ou 6 anos, quando eu esmurrava e chutava a porta do banheiro, gritando para meu irmão mais velho sair logo, pois eu estava apertada para fazer xixi. Nunca discordei daquele seu ato violento e o relembro com respeito. Ele era meu pai e me ensinava. Depois ele me oferecia seu colo e o mundo poderia desabar ao nosso redor, que eu estaria sempre a salvo.

E foi nessa mesma época que ele comprou aquele gravador cassete e gravou a minha gargalhada. Ele gargalhava e adorava gargalhadas e gostava da minha. Lembro bem daquela cena. Ele, minha mãe e eu, sentados no sofá da sala, falando um monte de bobagens e rindo, rindo muito. E ele gravou tudo numa fita cassete, no gravador novo. E ouvir a gravação por sucessivas vezes nos fazia rir ainda mais. Ouvíamos, ríamos muito e passávamos tudo para trás novamente, para ouvir de novo e de novo. Ao final, suspirávamos, cansados de tanto rir. "Ai, ai", a gente dizia. E ainda havia tempo para mais uma risadinha.

Aaaaaaai, aaai, lá em cima e lá em baixo, eu minha vozinha fina de menina apaixonada pelo pai e pelo momento que ele me proporcionava, nem lembro se manhã ou tarde ou noite, num dia lindo de minha infância.

Ai, ai.

Queria mais uma, pai, só mais uma. Só mais uma vez, passar a fita toda para trás, começar de novo, ouvir tudo de novo, rir e gargalhar. Só mais uma vez ouvir a sua gargalhada e rir até fazer xixi nas calças. Só mais uma vez, me sentir segura no seu colo e ver o mundo desabar sem medo de nada.

Aaaaai, ai. Só mais uma vez, pai, só mais uma...

25 julho 2010

a casa abandonada

Na volta do colégio havia uma casa abandonada.

Aquilo era engraçado: a casa abandonada só existia na volta do colégio. Na ida, às 7 da manhã, ela não existia para os meus olhos. Estava lá, no meio do caminho, incrustrada na paisagem matinal e etérea daquela rua em aclive constante, mas simplesmente não existia. Para existir, era preciso que eu a visse, que a enquadrasse com meus olhos curiosos, mas meus olhos às 7 da manhã só contavam as lages de pedra das calçadas, meu caminho corrido e percorrido rápidamente em direção ao colégio.

Talvez, em todas aquelas manhãs, a casa dormisse, tal qual a minha vontade. E, se dormindo, se aquietasse e se tornasse invisível pelo seu silêncio. Casas abandonadas sempre fazem barulhos específicos. Zunidos, estalos, vidraças balançando com ventos repentinos e inconstantes ou mesmo o bater de asas de algum morcego solitário. Casas abandonadas murmuram e soluçam. Casas abandonadas chamam.

E aquela casa me chamava. Talvez me chamasse na ida, mas como eu não a via, tampouco a ouviria. Mas na volta, eu sempre a ouvia e via. Ouvia o chamado dela, e ela me dizia "venha me visitar, estou te esperando!", e todas as suas janelas fechadas pareciam piscar para mim. Eu podia até ouvir o rangir do portão que não abria fácil, era emperrado, mas, uma vez feito de ferro torneado, nem precisava abrir para ranger. Portões de ferro torneados e enferrujados contém rangidos em si mesmos, são ranzinzas por natureza. E a impressão que eu tinha era que aquele portão me odiava.

Muitas vezes atravessei corajosamente o portão ranzinza, na volta do colégio. Eu o empurrava com força e ele rangia alto. Ao entrar, vislumbrava o tronco rugoso de um grande antigo jacarandá, cujas flores caídas na calçada coloriam o meu caminho. Então, eu andava pelo corredor lateral e seguia até a varanda, e ali sentava nos seus degraus sujos. Ficava ali sentada por um tempo que não me preocupava em contar, pois, afinal, aquele era um tempo que só existiria mesmo para mim e para mais ninguém. Quando eu saía dali, ou saía dela, sempre me despedia com o meu olhar. Eu sei que ela sentia isso, eu a olhava com carinho, e no meu olhar havia a promessa de retorno. Sair dali era difícil, ela me segurava, como se tivesse longos e macios braços. Ao passar pelo portão ranzinza eu o ouvia dizer "vá logo, vá embora daqui!". Eu ria por dentro.

Hoje eu vejo que, sem saber, eu a entendia. A casa abandonada vivia para dentro de si. Nunca havia entrado dentro dela, mas podia imaginar como eram seus quartos, suas salas, seus compartimentos secretos. Eu admirava a velhice de suas paredes descascadas e cheias de rachaduras, seus beirais incompletos semi destruidos, seu piso desgastado pelo muito pisar. A janela do sótão era menina, ela cantava. Se houvesse um porão, era dele o ronco que ouvia vez ou outra. E de sua cozinha, capturava no ar os resquícios dos antigos cheiros da salsa e dos assados com batatas no forno a lenha.

Muitas almas ali varriam com o vento as folhas das antigas árvores do pomar, pois casas assim sempre teriam flores e frutos no seu jardim. Os aromas dos frutos faziam parte dela , o jardim florido fazia parte dela, a pequena horta fazia parte dela. Tudo, além dela mesma, era ela e ainda ali ainda residia, mesmo que só na memória da casa abandonada.

A casa tinha muito a me contar e me contava aos borbotões, em partes desencontradas. Eu juntava as partes pacientemente. Histórias de homens, de mães e seus filhos, seus netos e bisnetos. Histórias de nascimentos e mortes, de chegadas e partidas, de alegrias e tragédias. Histórias de amor, de ódio e de solidão. E eu via e ouvia. E eu a sentia. O hálito da casa era doce. Mas não conseguia guardar nenhuma de suas histórias. Era ela a falar e falar, sempre, e eu a ouvir e ouvir. Muitas vezes o meu silêncio a aturdia, a deixava aflita. Mas eu não tinha nada para contar, era muito jovem e sabia quase nada da vida de uma casa.

Muitas visitas minhas à casa aconteceram. Lá eu nunca me sentira só, nem com fome, nem sede, nem nunca sentira medo. A casa tinha lá seus mistérios, seus achaques, seus fantasmas que a incomodavam e lhe tiravam ainda mais o viço. A cada dia ela se acabava, parecia que sua energia lhe escapava, e era disso que ela precisava, da energia da minha presença, que a cada dia depositava ali. Eu me sentia livre dentro daqueles muros, ela ceitava que eu me sentisse livre e reconhecia a minha liberdade. Sem mesmo me ouvir, nem saber quem eu era, generosa, ela me acolhia e deixava-se habitar. Compartilhava-se um bem que não se sabia, era mútuo, e seria quase eterno.

Um dia a casa foi demolida. Uma demolição rápida, pela manhã. Amanheci, fui ao colégio e na volta ela agonizava. Parei à frente, incrédula. So existia ainda a fachada, sem as janelas que piscavam. Deixaram-na nua e eu vi o seu vazio interno, vazio do qual ela tanto se envergonhava. O telhado reduzido a uma pilha de lenha e cacos de telhas e eu ouvia o barulho de motosserras, vindo lá dos fundos. Paralisada, olhei para o portão ranzinza e este me dizia "vá embora!", mas eu fiquei ali, solidária, ainda tentando ouvir o chamado da casa abandonada, para que eu entrasse.

Mas ela não me chamou. Nem quando a motosserra parou eu a ouvi chamar. Homens rudes e desconhecidos circulavam como autômatos e empilhavam coisas, restos seus, grandes tijolos. Eu olhava as pilhas e reconhecia cada um dos pedaços. Uma máquina entrava pelo muro semi-destruído e arrastava as muretas dos canteiros e os pequenos arbustos que já haviam sido arrancados. Só o antigo e enorme jacarandá da entrada parecia estar incólume e talvez estivesse sendo poupado. No dia seguinte, nada mais existia, nem o portão ranzinza. Só o jacarandá triste e opaco, sem as suas flores.

Eu já não tinha mais onde parar na volta do colégio. A ida e a vinda se tornaram uma coisa só, um tropeço, um cansaço, uma coisa enfadonha e totalmente sem graça. Nem a curiosidade me movia os olhos, mesmo sabendo que a casa nova e moderna se erguia em volta daquele jacarandá, que o mantiveram, talvez, em sinal de respeito à memória daquela que a havia precedido. Mas eu não reconhecia mais o meu caminho, estava perdida na volta. Eu procurava os sinais do tempo e não via além das pedras das calçadas.

Na volta do colégio, perdida no vazio de um tempo que nunca existiu a não ser para mim mesma, naquela casa abandonada.




22 julho 2010

abstraindo o momento



Hoje, deparei-me com hienas cor de âmbar sob o peitoril daquela imensa janela que dá para o precipício dos eucaliptos fúcsias de Estolingrado.


Nenhum véu, nem as vinhas, nem os vãos.

E dentro das horas cujos minutos pingavam cera sobre o pires da xícara que ardia sobre as amarelas encostas daquelas tortas costas de DeMiltons, lancei-me ao hálito apodrecido das magnólias nauseabundas, num vôo sem esqueletos nem chumbo, na ânsia de vômito mais só, insone e insólito que nunca, em camadas e espasmos, houveram de haver no curto espaço cumprido por esta breve fenda atemporal que se me revela neste frígido frigir de ovos moles.

Nem as vinhas. Nem os vãos.

Nenhuma senda, nem sonda, nem lontra. Nenhum caramanchão. Tudo encerrava as navetes, e os molhes firmavam como luvas até o espartilho. Mudas, medos, malvadas múmias miavam nas catacumbas aureoladas dos eternos picos cerrados, e o cheiro era de montanhas de nenúfares. Ah, os eternos picos!! Sem sombra, daqueles píncaros nada se garfava, só gargalhava. Havia muitas heras, e as priscas eram outras...

O véu se fez veia. A Velha se fez virgo. O lance final sossobrava e nada vinha do que viria se viesse ser.

Que desperdício! Sim, as priscas eram outras. E o nada se fez mais nada.

20 julho 2010

Não me sigam




Não escrevia porque gostava de escrever. Não escrevia para que a lessem. Suas pretensões de existência naquelas telas eram mínimas, e para consumo próprio. Escrevia para chamar atenção de si mesma. Escrevia para poder enxergar-se como era. Escrevia para tentar comunicar-se com seus pensamentos escondidos. Escrevia para realçar cores, para aprimorar as formas, para aperfeiçoar-se na dinâmica daquilo que chamava de constatação de si mesma.

Há quem diga que a palavra escrita ou falada foi inventada para esconder pensamentos. Ela discordava! Ali naquela tela ela tentava abrir seu baú de segredos. Descobria-se. Intensificava-se. Exaltava-se. Dizia quem era e ao que vinha. E o que vinha era aquilo que pensava, do jeito que pensava.

E o jeito é de cada um, ela sabia. A beleza é de cada um. E há a beleza de cada um, de todos os jeitos. E isso a encantava.

Se jogava com palavras é por que gostava de jogos. Jogava palavras no vácuo da tela azul, como dados, como cartas. Mas não queria contar pontos, muito menos ganhar. Queria somente o jogo. Queria existir no jogo. Queria ser o jogo. Permitia-se ser o jogo. Mas só ela sabia disso. E este era um segredo cuja chave estava no que escrevia.

Mas um medo a assombrava a cada tecla desenhada, em cada palavra, em cada frase desenformada. Um medo terrível, uma sombra, um fantasma. E, se alguém, algum dia, conseguisse descobrir essa chave?

Aí o jogo terminaria. Terminaria suas chances, suas luzes, seu palco de ser, suas probabilidades de existência à margem do tempo e espaço. O tormento da sombra da compreensão. A cartada do mestre.

E isso, senhoras e senhores, significava a ela somente uma coisa: o fim.

Porém, salvava-se na tábua de uma última carta, escondida dentro da manga. Tudo mudaria e não mudaria por completo. Pintaria novas bolinhas nos dados. Inventaria um naipe novo. Sabotaria as roletas. Compraria os reias e os ases, faria pactos com curingas, tudo muito trabalhoso. A existência é trabalhosa. E seria tudo justificado, tudo pelo jogo. Tudo pelo vício de escrever. Tudo para manter o segredo da sua existência. O segredo da sua beleza.

Continuaria, custe o que custasse. Mudaria o segredo, se precisasse, mas só em última instância. Só no desespero.