23 agosto 2010

mínima história



Manhã sem pressa. Como um milagre, há sol por entre os requadros da janela. Em cada requadro um brilho diferente, uma cor a mais no tapete branco e sujo da sala. O acolchoado de flores vermelhas, dobrado, descansa sobre o pufe. Sobre ele, os gatos escolheram deitar-se e fechar os olhos na direção do sol. Para o gato, sol é para sentir no pelo.

Lembro de abrir o armário e ventilar os pesados casacos de inverno. Há muito não veem a luz do sol, nestas semanas de chuva e frio. As portas, abertas em par, os expõem em seu sono. Dormem os casacos, presos pelos ombros, braços caídos, golas semi abertas, bolsos desprotegidos. Como fica estranho eu levá-los a passear sobre esse sol, eu lhes faço carinhos. Meus casacos são como meus guardiães, meus anjos sem asas.

E só eu entendo os meus bolsos.

Procuro nos bolsos dos meus fiéis casacos bilhetes, farelos, tickets, papéis de balas e outras pistas de felicidades esquecidas. Aqui e ali encontro moedas sem brilho, trocos quase sem valor. Mas há os bilhetes do cinema, do último e já tão distante show no Theatro, um guardanapo com um número de telefone de uma tal Vanessa que nem lembro...ah, sim, uma mãe de uma amiguinha de Anabela, naquele aniversário, que sentou-se à mesa comigo e só parou de falar quando começou a comer.

Um brinco sem par. Uma miçanga. Dinheiro! (Ah, só uma nota de dois reais, dobrada e cheia de rabiscos de caneta...) Um lenço de papel usado. Tic tacs. Uma nota fiscal de padaria. Um halls todo melecado. Um batom sem a tampa, que borrou o bolso por dentro. Ingressos da última terça de cinema. Um buraco. Um buraco no forro! Pode até ter escapado algo por ali...hum. Apalpo o casaco e ele gosta. Sente cócegas. Ri um riso de lã, abafado, contido.

Hum. Meus casacos não reclamam meu roubo de seus pertences. Mas certamente eles se sentem bem mais felizes com eles. Fazem parte de suas personalidades, tanto quanto seus botões e golas. Hesito, coloco tudo de volta. Não quero mais que eles se sintam vazios de minhas andanças. É disso que eles sobrevivem. Além do mais, eles sobreviverão a mim.

Assim, é preciso que hajam pistas, muitas delas em meus bolsos. Para que uma mínima e importante história possa ser contada. Papéis, doçuras, grampos de cabelos, caixinhas de chiclets, borrachinhas, cartões de visita. Fios de cabelos. É preciso que os bolsos sussurrem, assoprem, suspirem esses acontecimentos. Tudo é importante. A cada ticket, a cada papel de bala amassado, um capítulo é escrito.

E se eu colocasse ratoeiras nos bolsos dos casacos? Para que eu, num dia de distração, volte a querer controlar a vida de meus casacos e seus bolsos. Seria um grande susto, eu sei, mas seria o aviso, o alarme soando..."pare, deixe como está", "lavanderia, não!!"...

Agora sim, a manhã começa a acontecer na minha cabeça.

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