31 março 2008

Crescendo

Há pouco, quando voltava para casa, depois de deixar Anabela na escola, deparei-me com a seguinte cena: mãe e filha apressadas, a menina de farda escolar e mochila nas mãos, e a mãe explicado - em claro tom de discurso, como fazem todas as mães - à filha, que provávelmente passaria por uma prova ou teste logo a seguir.

A mãe dizia à filha não muito atenta, entre suas passadas apressadas na descida, que "decrescente são os números contados do maior para o menor" e que "crescente é o contrário, os números são contados do menor para o maior".

Muito bem.

Muito bem?

Isso aconteceu em poucos segundos. Cruzei com elas na pressa - delas - e no meu vagar de quem sente aquele sono irremediável pós almoço, com minhas orelhas distraídas. Elas realmente estavam com pressa, já passava da 1 e meia, horário de início da aula. E minhas orelhas não tinham sono, e mandaram o discurso quebrado para a sala de reuniões, onde milhares de neurônios estavam lá, no décimo segundo cafézinho do plantão de novidades. Não houve acordo de pausa.

A palavra "decrescente" não saiu de minha cabeça. De-cres-cen-te. Uma coisa que cresce ao contrário, como pode? Tem alguma coisa errada aí. Decrescer só com muita imaginação! Só em filmes, daqueles que a gente acompanha o cresimento do broto de feijão, feito pacientemente quadro a quadro, passado de trás...para frente! Só assim para "decrescer" alguma coisa...

Quando pequenos, fixamos os termos por insistência e não por entendimento. E este é um dos exemplos clássicos de termo mal concebido, ao meu modesto - porém pretensioso - pensar. Uma palavra sugere uma imagem. Se "crescer" nos sugere algo pequeno tornar-se grande, como é que "decrescer" pode sugerir o contrário?

"Decair" seria mais apropriado, não? Ordem crescente e ordem...decadente, ora pois. Todos sabemos e aprendemos rápidamete que a estrela cadente cai. E também sabemos, por experiência própria, que cair é para baixo.

A palavra "crescer" contida no termo "decrescer" confunde. Gravamos o termo "crescer", sabemos muito bem o que ele significa e ainda temos imagens em slow-motion disso gravadas na nossa memória.

Lembrei do rosto daquela menina ouvindo a mãe. Passou por mim como se um vento a levasse feito pétala de flor. Ela cresce em sua beleza infantil. Nunca decrescerá nela. Faixa cor de rosa nos cabelos lisos e compridos e um olhar confuso de menina que mal sabe o porque da aula todo dia.

Aulas todo santo dia. Num crescendo sem horizontes do fim.

28 março 2008

o lugar de tudo

Chove.
Como bolinhas de vidro, os pingos saltitam e ecoam pelas telhas.
Essa música é linda.
E cresce.
Agora as bolinhas de vidro tornaram-se cachoeira.
O efêmero no rio do piso de cacos brancos, sem folhas secas prá levar na correnteza.
Sem barquinhos de papel.
Sem pés descalços.
Aqui de cima eu só observo, parada e sem vontades.
O ralo e sua grelha faminta engolem a chuva e sua linda música.

Dou de ombros.
Nada mais preciso saber.
É assim mesmo. É a música.
Num repente tudo pode ser limpo, coado e escoado.
Tudo pode voltar para o lugar de onde veio.

27 março 2008

na bolha da noite

Afundei-me nessa noite e não soube lidar com ela. Desde que comecei a me arriscar a contar minhas memórias, já não se trata mais de simples histórias a contar, e sim, as minhas memórias. Como sou séria e responsável, assumo ares de gravidade, como se estivesse num velório. Preciso encontrar as palavras certas. Preciso me fazer entender.

Escrever para os outros é bem diferente de escrever para si mesmo.

Preciso de palavras que não traiam os fatos, preciso de poesia para emoldurá-los e torná-los eternos, preciso de equilíbrio para que tudo fique na superície do imaginário possível, preciso persistir na beleza mesmo que ela esteja longe do momento, preciso trazer à tona o riso escondido debaixo da trama do drama.

Preciso que a repercussão do fato seja sólida tal qual uma cabeleira esvoaçante. Se conseguir apenas uma relato confuso ou difuso, isento de graça, certamente ele se misturará às outras memórias de quem me lê, e virará apenas em poeira perdida no vento.

Ah, isso eu não quero. Não é esse o meu objetivo.

Quero faíscas no olhar, o sorriso indíscutivelmente espontâneo, o sim! é isso!, o conforto e o confronto de idéias que possam adicionar ainda mais amor ao que relembro aqui.

Afundei-me nessa noite, que tornou-se personagem e não um tempo de escrever. Hesito em firmar acordos, em formular frases, em rotear entradas de dados aleatórios, em ter-me alheia a pesadelos em andamento ou pré anunciados. Nestas horas o silêncio massacra, abre feridas e fecha-me as portas e as janelas pelas quais quero me deslocar. O silêncio, como um oco escuro cheio de nada.

Minha velha-nova história ficará suspensa sobre mim, até que a manhã, refletida nos muros que me cercam, me liberte.

26 março 2008

a caminho para a escola

- Mamãe, tou com tanta saudade do Meco...
- Eu também estou, filhinha.
- Quero mandar uma carta prá ele...e um ovo de páscoa.
- Vamos ter que colocar no correio. E o que voce vai escrever na carta?
- "Eu te amo com muita paz".
- Lindo!
- E também tou com muita saudade do meu papai...
- Quer escrever prá ele também?
- Quero. Mas eu não sei escrever! Voce é que vai escrever prá mim.
- Tá bom, eu escrevo. E o que vai ser?
- "Querido papai, voce comprou tudo que eu pedi prá voce comprar prá mim?"

25 março 2008

Um dia inteiro

Passei o dia inteiro buscando um passado que me redimisse do presente e do futuro.

Um dia inteiro, e nada. O passado está lá, o presente se realiza e o futuro é imponderável.

Mas é o irrealizável que me consome.

Que o tempo tenha piedade de minhas pequenas e sucessivas covardias.

23 março 2008

Confissões pascoais

Tenho uma confissão a fazer. Não conseguirei mais viver em paz se não fizer isso. E tem que ser agora. A maturidade também faz dessas. Afrouxa a gente por fora e por dentro.

O fato é que roubei uma sem-quantidade de bombons, balas, chocolates das cestinhas de Páscoa de meus irmãos, durante muitos anos. Sim, era eu. E eles nem notaram. E pior: roubei até de minha própria mãe de meu próprio pai! Será que tenho salvação?

Eu não resistia à tentação. A vontade era imensa e me consumia.Na época não existia a definição do chocolatismo crônico, éramos todos muito ingênuos. Eu era uma chocólatra em potencial e não sabia. E ninguém sabia, não se falava no assunto. Não havia o C.A. No máximo aquele comentário das tias, que chamavam-me de "formiga" durante um chá e eu achava até bonitinho. "Ela adora açucar", diziam, "puxou ao pai". E minha cestinha de Páscoa era uma das primeiras a ter seu conteúdo esvaziado. E aí eu surtava. Meus dentes começavam a ranger, minha língua coçava. Meu sangue pedia e como uma vampira sedenta eu tinha que ir atrás.

As primeiras vítimas eram aqueles que estavam com as cestinhas mais cheias, pois aí ficava mais difícil de notar a falta de alguma coisa. Quando os ovos já haviam sido meio-comidos, eu tratada de tirar umas pequenas lascas, com o cuidado de deixar o que sobrasse assim, proporcional. Eu explico: avaliava o ovo já semi-comido e escaneava sua forma tridimensional. Então hábilmente e cuidadosamente tirava lascas, deixando-o na mesma forma, só que um pouco...menor. Ninguém notava nada. Eu saía de fininho, bem faceirinha com o meu feito, quase satisfeita.

Mas um roubo bem sucedido chama outro. Olhava minha cesta cheia de...papéis amassados e surtava de novo. Suava frio. As mãos gelavam. Os olhos saltavam das órbitas. Não havia jeito, eu precisava!

Então, ia à caça de um novo distraído. As cestas estavam ali, eu sabia, ou dentro dos armários ou mesmo inocentemente descansando em cima da penteadeira.

Se não haviam ovos abertos, roubava as balinhas que, escondidas no meio da palha que forrava a cestinha, eram displicentemente despercebidas pelos donos. Quem não é visto, não é comido. Mas eu estava ali, sempre de olho, escrafunchando a palha. Tudo pelo vício. E se a palha fosse alta, eu poderia até encontrar coisas maiores como um ovinho de açúcar ou um bombom Sonho de Valsa, que era o meu preferido. E quase sempre era bem sucedida.

Bem, algumas poucas vezes fui descoberta. Ou mesmo delatada. Mas o tempo se encarregava do esquecimento. Passava-se um ano, chegava novamente a Páscoa e eu voltava à carga.

Muitas Páscoas, muitos roubos. Hoje é dia de confessar e pedir perdão. Sei que minha cadeira é numerada lá no limbo. Só não sei se há Páscoa por lá e ,se houver, se há chocolates meio-comidos em cestas com a palha alta e outros limbonianos assim, meio distraídos. Isso seria melhor que a encomenda.

Se assim for, eu certamente terei novas recaídas. E o céu vai ter que esperar, assim como a eternidade. Um minuto na boca e o resto da vida na consciência. Mas, como dizia minha sábia madrinha, "só se leva daqui o que se come e o que se vê". E ela não falou nem de corpo nem consciência pesados.

Meu medo é que no limbo haja um curral de vacas leiteiras. E muitas plantações de cacau. E uma linha de montagem de ovos de Páscoa só me esperando prá iniciar a produção...aí a eternidade vai ficar mesmo é para depois da eternidade.

19 março 2008

Cláudia e as ervilhas

A pequena Claudia não gostava de ervilhas.

Recusava-se a come-las e as atacava com o garfo, expulsando-as do círculo sagrado de seu prato. Pobres ervilhas! Amontoavam-se amedrontadas umas sobre as outras, sem chance nenhuma de acordo. Uma vez ali, em grupo, ainda tentavam um improviso de última hora. Quem sabe em forma de um colar? Ou, talvez, uma simpática taturana? Bolinhas de gude? Uvinhas? Pura perda de tempo.

Dali do canto do prato redondo elas, as ervilhas, assistiam às sucessivas garfadas do fofo purê de batatas serem levadas à boca da pequena Cláudia. O purê ia e o resto ficava.

No prato de Claudia o santo sempre tinha vez. E o santo do prato da pequena Cláudia devia ser bem gorducho. Difícilmente ela comeria tudo o que lhe era servido comedidamente, pois já era sabido que dali muito pouco ela iria levar à boca, mastigar e engolir. Mesmo assim ainda se tentava sugerir a ela tais novas possibilidades alimentares. "Ela é chatinha para comer, né?", comentavam as tias em tarde de chá. "Pode ficar doente assim" ou "por isso que é magrinha e branquinha", tergiversavam as primas mais velhas nos encontros dominicais ou em rodas de chimarrão.

Enquanto nós, seus irmãosmais velhos, já mais altinhos e parrudinhos, raspávamos o prato, a pequena Cláudia fazia careta para mais da metade do que havia no dela. "Que pecado", ela ouvia, "com tantas criancinhas sem ter o que comer..." A cara feia cotinuava lá. Com a ponta do garfo ela ia empurrando tudo o que considerasse intragável. Seus critérios iam e vinham, passeando pelos seus cinco sentidos. Forma, textura, cheiro, quente, frio, cor. Até o barulho contava.

Aliás, barulho contava muito. Lembro que o pai detestava nos ouvir mastigando milho verde cozinho, dizendo que aquilo parecia o eqüino mastigar de um cavalo. Eu achava isso muito engraçado e fazia mais barulho ainda.

Olho para as ervilhas e lembro dela, nesse estranho longe-perto em que nos encontramos agora. Isso é razão para um sorriso instantâneo em meu rosto. Ela era chata para comer, e daí? E hoje possui um monte de novos desafetos alimentares, coisas que "apareceram" aqui e ali, naturais ou adquiridas. Isso para mim não faz a menor importância. Nem sei se ela hoje gosta de comer ervilhas. Mas sei que ela gosta das piadas de ervilhas, assim como gosta de tudo que é tipo de piadas, o que me faz ficar sempre muito próxima dela.

Diga-me o que voce come - ou não - e eu lhe direi que isso me interessa muito.

Cláudia era chata mas as ervilhas eram redondas e divertidas. Boas prá olhar e empurrar com o garfo. Talvez seja esse o segredo de uma boa piada, não? O que é um pontinho verde no tapete sob a mesa de jantar?

18 março 2008

A foto dentro do livro

Bodas de Ouro da Vovó e do Vovô, lá pelos idos mil novecentos e sessenta e tantos.

Salão paroquial cheinho de gente. Mesas encostadas umas às outras formavam um labirinto e nos provocava à correria, sem se importar em sujar a roupa domingueira. As toalhas brancas, os pratos, o cheirinho das saladas já a postos antes do churrasco. A parentada não parava de chegar.

Tinha aquela escada, encostada à parede, que ia à "cabine de som", lugar estratégico para ver todo o rebuliço lá do alto. Nos sentávamos nos degraus bem lá de cima. Lá em baixo, alguém com uma máquina fotográfica passava de mesa em mesa para registrar as ilustres presenças ao evento ímpar.

Cadê a Denise?

E lá estava ela, farejando a foto.

Colocava-se em posição atrás do alvo ou mesmo próxima a ele. Top-model acidental, um papagaio-de-pirata fazia vezes de periquitinho perto dela. Sorria. Seus óculos de "gatinho"já sorriam sempre, antes mesmo dela sorrir. Fazia pose, se sentada. E fazia o mesmo, se de pé. Tinha longos braços e longas pernas para fazer o que bem entendesse. Cruzar? Lançar um tchauzinho? Erguer o queixo? De perfil? Tres-quartos? Mão no queixo? Ou no cabelo? Na cintura?

Vaidosa, cuidava de sua imagem com o pouco que lhe havia disponível, não que isso fosse necessário à sua beleza natural. E nada de timidez. Ela sabia se insinuar com pouco barulho. Sua imagem provocava alegria. Ela estaria na foto para quem a quisesse ver, como um prêmio. Insistia para a foto ficar perfeita com a sua presença. Desafiava-se e fazia sua própria torcida. Ela estava ali para isso.

Denise e e seus óculos de gatinho. Olhos astutos, alegres, sonhadores. Olhos por trás dos óculos que escondiam a beleza verde e secreta da menina que roubava livros. Sim, esta é a verdadeira, pois aquela outra, título de livro, nem lhe faz cócegas. Além de livros, roubava de si mesma a presença e o som da própria voz, quando mergulhava de corpo e alma entre as páginas de qualquer coisa que pudesse ser lida. Adormecia no suave travesseiro da leitura. Cobria-se com páginas para não passar o frio do não saber. Esquecia-se de si, entregava-se à transfusão de sangue por letras. Transformava-se em imagem suspensa, onde apenas os olhos tinham status de mobilidade visível. Nem respirar se permitia. O ar entrava e saía por sua própria curiosidade. Só respirava fundo ao ler a frase final. Parecia até que dizia:

- Onde é que estou?

E nestas horas ela - também - esquecia de sua imagem aparente. Mas só nestas horas. E esquecia de mim, não própriamente de todo, mas da parte que de si fazia também. Eu lhe estalava os dedos à face, gritava "ei!", era cruel. Lembrava-lhe de descer, de voltar, de aterrisar. Puxava o fio. Não como favor, mas por puro egoísmo. Tinha ciúmes de todos os livros que caíam-lhe às mãos. Tinha medo de perdê-la dentro deles, que eles a abduzissem para sempre e ela virasse sómete um conto ou lenda e minha vida.

Difícil concluir isso aqui. Vou deixar em aberto, a porta aberta, para poder retornar. Muito de mim está com ela e muito dela eu tento ainda assimilar. Seria clichê afirmar que um fio nos une ou que somos duas metades de uma laranja. É bem mais do que isso e bem mais do que eu possa tentar explicar. Nunca vou acabar, mesmo quando conseguir terminar.

a propósito da data


Taí, ó. Sem mistério nenhum. É assim que se faz uma nuvem.
(arte fotográfica: Américo, livre-borrifando e livre-arbritrando, sob um céu ao sul)

Américo






Hoje Américo faz 20 anos.

Caramba, 20 anos!

Eu disse 20 anos????


Bem, o tempo passou. Aquele meu bebezão já é um homem feito. Está lá longe e a gente agora só se ...visita. Na real sempre foi assim. Sempre mantivemos o hábito de bater à porta um do outro por uma questão de respeito mútuo. Filhos têm a sua individualidade, seu espaço próprio, e só podemos opinar, sugerir, orientar por meio da nossa experiência. E nem sempre a nossa experiência será a mais bem sucedida, pois nossos olhares para o mundo são diversos.


Américo tem esse nome pois ele é grande. Grande Meco. Além desse simbolismo, há também outro, o da letra A, o número 1. O início de tudo. O gênese de um novo sentimento, que foi aquele de gerar a vida. E a vida muda completamente de rumo depois disso, tanto para quem nasceu para ela quanto para quem deixou-se morrer um pouquinho dela. A vida se parte em duas para aumentar as suas chances de sobrevivência.


Américo me surpreende a cada dia que passa. Um filho, um amigo, uma criatura do BEM. Dúvidas e aflições todos tivemos e sempre iremos ter. Melhor buscar caminhos que não foram percorridos e isso - me parece - é o que lhe move. Se há tantos caminhos, por que não tentá-los? O novo também é bom. Desprender-se é bom. Alçar vôo solo é bom. Se cair, vai saber em seguida que faz parte do script divino.


Deposito parte de minha fé nas mãos e cabeça de meu filho. Peço proteção para dias difíceis que certamente irão chegar. Não quero falar de anjos pois ele mesmo é um deles que veio até mim. E a vida dos anjos é secreta. Quero me surpreender, sempre. Quero acreditar, sempre.


Américo, meu filho número 1, meu amor. Para sempre.

17 março 2008

pós (de arroz?) scriptum

1. Do post "Uma casa na floresta": não, ela não lia em inglês. É claro que a edição era em português, tá? E o livro era da Nena, minha irmã-trocada-no-hospital. No quarto dela sempre tinha coisas bem legais para se escrafunchar. Depois eu soube que haviam mais livros da mesma autora. "Uma casa na ravina" e "Uma casa na cidade" completavam a saga - me parece - autobiográfica da autora.

2. Do post "Cena III - Pecados e segredos": aquele desgraçado do Rubens, que era o irmão da Nena, não falava "meleca de nariz". Ele falava era RANHO, mesmo, o que tornava o meu segredo muito mais nojento (ou escatológico, palavrinha que lembra escada sem nada ter a ver com uma) e vergonhoso. Desgraçado! Ele sempre fazia isso quando me via...como podia ser tão cruel?

3. Bom mesmo é saber que Rubens não mudou nada. Continua o mesmo cri-cri.

A risada do vovô Artur

Como descrever a risada de alguém?
Uma risada é algo indescritível. Onomatopéias e descrições de peitos aerados chacoalhantes seriam totalmente ineficazes. Quem conheceu o vovô Artur sabe do que estou falando.

E como descrever uma risada que não se vê e nem se ouve? Uma risada que está só no olhar? Uma risada que mora só num fio de canto de boca, quando no outro canto mora a ponta achatada de um palheiro apagado? Seria preciso um esforço muito grande para abstrair isso. E muito talento para fazer-se entender.

Um radinho de pilha no ombro fazendo concha ao ouvido, um tamanco surrado nos pés também surrados, uma cuia na outra mão, bomba na boca, cotovelo no joelho, uma manhã quase noturna naquela varanda. Acho até que os pássaros nos mamoeiros silenciavam para só observar.
Eis personagem e cenário.
Era a reunião matinal do empresário com seus colaboradores em sua empresa, para planejar o que seria espontâneamente e necessáriamente mudado durante o decorrer das próximas horas. Se sol, se chuva, se calor, se frio. O "noticioso" dava as dicas das próximas adivinhações. Nada para se preocupar muito. Tudo ali era natureza e a acompanhava no seu tic-tac.

A piada podia sair na hora no café, no almoço ou na janta. Ou em todas elas. Piadas não tem hora, nem em velórios é possível segurar uma. E disso ele também fazia piada.

- Quem é que sabe jogar sete-belo?
Jogávamos pife, pontinho, canastra, escova. Mas sete-belo ninguém nunca ouvira nem falar. Perguntávamos como era o jogo e ele respondia:
- Só eu sei, agora. Dos que sabiam só sobrou eu, hehe.

E dizia isso sem o menor resquício de melancolia. Como se fosse um trunfo, um premio final. Vovô, o Highlander. Vovô e sua "mula manca". Até hoje eu não entendo aquela.

Mas prá quê entender? A risada dele é que era o meu prêmio. O grande lance era o mistério sem mistério. A vida de cada um se encarregava de mostar as piadas que viriam. As dele já eram as nossas, na sua bondosa, alegre e infinita herança.
Meu avô ria como uma criança, e isso eu soube, mesmo sem saber, no primeiro momento em que rimos juntos.

13 março 2008

Cena III - Pecados e segredos

Uma tardinha qualquer, em Tres Portos, Sapucaia. A menininha brinca com seu irmão mais velho em frente à sua casa. Não havia rua pavimentada, nem calçada. Era rua de chão batido, esburacada. Ela gostava de ver quando a patrola passava com sua imensa pá que nivelava a rua. Ela ouvia o barulho e corria para o portão para olhar aquele gigante amarelo, com aquelas rodas enormes. Só detestava lembrar do apelido que seu primo - logo ele, seu amigão! - lhe dera, "pneu de patrola".

Havia grama ao invés de calçada. E uma valeta rasa, onde escoavam as águas nos dias chuva. Muitos sapos habitavam aquela estreita fenda, e por vezes, quando a água acumulava e desanuviava, podia-se ver os minúsculos girinos. Os girinos eram caçados pela gurizada impiedosamente, para muitas experiências, muitas delas fatais. Potes, garrafas, coadores de cozinha "emprestados": tudo isso virava material do nosso laboratório doas horrores experimentais. Éramos tão puros!

E isso nem era coisa só de meninos. Ela mesma era muito corajosa, e até havia pego juntamente com o primo alguns grilos que pulavam na grama do jardim e arrancado as suas pernas. Causava-lhe nojo e repugnãncia tocar naquelas patas peludas, mas fazia. Era engraçado ver os coitados sem as pernas, assim como era muito engraçado pegar as folhas das formigas cortadeiras e ve-las caminhando no ar. Mas os girinos...ah, esses aí eram muito mais divertidos que os grilos e as cortadeiras. E nem sabia dizer o por que disso.

Um dia ela brigou com o irmão por causa dos girinos. E foi feio. E acho que foi a primeira vez que se arrependeu de algo na vida. E também a primeira vez em que acertou um alvo. A primeira e única vez que machucou alguém, deliberadamente.

Ele estava lá, sentado na pontezinha de madeira sobre a veleta, pesquisando solitáriamente seu conteúdo vivo. Ela quis participar da brincadeira. Mas o seu irmão não a queria por ali e a afastou, gritando para não se meter onde não era chamada. Magoada, ela estava dirigindo-se ao portão da casa. De repente, ela viu a pedra. Uma pedrinha pequena, destas que se coloca aos montes no chão para evitar o barro na entrada das casas. A pedra foi parar na sua mão e, sem pensar e mais nada, dominada pela raiva que sentia, atirou com toda a sua força na direção do irmão, que estava de costas. E não é que ela o acertou bem na nuca?

Foi uma gritaria e uma correria. O sangue escorria. O irmão, incrédulo, a acusava e chorava, com a mão ensanguentada. Ela, apavorada e imóvel como uma estátua, totalmete incrédula de sua ação. "Foi sem querer!", gritava. A mãe veio ver o que acontecia e logo foi tratando de cuidar da ferida. A sua sorte era que o irmão tinha a fama bem maior do que a sua, que era considerada a quietinha da família. Ele já havia caído de cabeça do abacateiro e aquele sarrafo que prendia o balanço caíra em cheio na sua cabeça... mas ela chorava de arrependimento do seu ato impensado, pois jamais acharia que realmente acertaria o alvo. Aquilo de atirar a pedra foi uma extensão de sua raiva, nada mais do que isso, não queria mesmo machucar ninguém!

Se houve um castigo depois disso, por parte de sua mãe, ela não lembra. Seu castigo foi nao esquecer jamais disso, de como sua raiva havia lhe dominado. Por mais que fale e escreva, a imagem está lá. Muitos foram os relatos às tias e aos primos, com até uma ponta de orgulho, depois, por sua coragem. Mas ela nunca concordou com o feito. No fundo ela se envergonhava disso tudo, assim como se envergonhava toda vez que Rubens a encontrava e gritava prá todo mundo ouvir:

- Essa daí come meleca de nariz, escondida!

12 março 2008

Uma casa na Floresta



Eis o livro preferido da menininha de cabelos curtos. Um romance infanto-juvenil de uma autora norte-americana.


Fora parar em suas mãos por pura curiosidade infantil, pois gostava de vasculhar gavetas e prateleiras nas casas e os quartos dos primos mais velhos. Sempre haveria algo interessante ali, coisas que não tinha ainda acesso.


Aquele livro interessou-lhe inicialmente pela ilustração da capa, acho. Uma cena familiar, que lhe inspirava tudo que mais gostava na época: a brincadeira de bonecas. E, talvez, a identificação com aquele cabelo da personagem principal. Um cabelo curto, cor de melado, com aquela franjinha.


Recheado de belas ilustrações internas, todas em preto e branco, o livro conta a estória de uma menina que morava com seus pais, no meio de uma floresta, longe da cidade. A vida era árdua, trabalhosa, era preciso subsistir e sustentar-se. Mas haviam as memoráveis festas de Natal, onde celebravam-se com os parentes que vinham de muito longe. Os presentes e as guloseimas eram feitos à mão, como bonecas de pano e carrinhos de madeira. E tudo era descrito minuciosamente e as ilustrações complementavam o entendimento. A autora descrevia pacientemente e didáticamente as práticas da culinária, costura, marcenaria e plantio. Bater a manteiga em tachos com um colherão de pau, despejar xarope de açúcar sobre a neve e fazer caramelos, colocar batatas cozidas quentes em sacos para aquecer os pés, costurar bonecas, defumar carnes: de tudo isso podia-se saber como fazer, lendo aquele livro.

E haviam as brincadeiras, muitas delas. Os medos, as alegrias, os sonhos, as angústias e esperanças. A identificação com o que se lia era muito grande. E os livros que marcam a memória são os que fazem isso.

Me emocionei ao achar na internet a imagem dessa capa. Fiquei grata. Voltei no tempo. Meus cabelos estão curtos, hoje.





11 março 2008

a menina dos cabelos curtos

Aí está ela, de franjinha e maiô, desfilando em chá de madame.
(Naquele tempo não existia lei nenhuma que proibisse o trabalho infantil...)

10 março 2008

A casa da Vovó

A casa da vovó - e era assim que a chamávamos - ficava em um sítio em Sapucaia. A casa ainda existe naquela rua, mas certamente não é mais como existe em minha memória. Nela eu passei os melhores momentos da minha infância.
A casa era verde. Verde claro. E ficava em meio ao verde, cheia de árvores e sombras. Para quem ali chegasse, depois do rangido do baixo portão de ferro, a recepção era feita por rosas, bocas-de-leão, cravos-de-defunto, dálias e margaridas, num arranjo cuidadosamente despreocupado de canteiros. Besouros e abelhas, numa sinfonia de zumbidos davam as boas vindas. Mas entrar pela porta da frente era incomum. A porta da frente quase nunca era usada e só era aberta para gente muito estranha. Normal era entrar lá pela porta dos fundos.



O caminho para a porta dos fundos era a direita de quem entrasse pelo choroso portão de ferro. Ali, seguindo a indicação das orgulhosas e repolhudas dálias, seguia-se por um corredor que era ladeado pela casa e por uma cerca normalmente coberta por trepadeiras carregadas de chuchus. Antes da cerca, uma pequena faixa de jardim, onde reinava absoluto um pé de marmelo muito famoso e altamente ameaçador. Cada um de seus galhos, muitas vezes cobertos de meigas flores, prometiam castigos dolorosos a quem resolvesse infringir as leis da casa. Por isso, se entrássemos correndo por aquele corredor, logo abrandávamos o passo, em temor ao pé de marmelo.


A porta dos fundos ficava numa grande varada, a 4 degraus do chão. Nós a chamávamos de "área". A área era protegida por muros onde costumávamos sentar ou brincar. Havia um lavatório com um pedaço de sabão e uma toalha surrada que era usado sempre antes e depois da ordenha matinal.

- Mãe, onde vai ser o almoço de Páscoa?

- Vamos fazer na casa da Vovó, ali na área.

- Ôba!

- Tia Landa vai fazer sorvete!

- Ôbaaaaaaaa!!!



O único banheiro ficava fora do corpo principal da casa, e ficava ali na área. Isso era trabalhoso no caso de um aperto noturno. Vovô e Vovó tinham um penico em baixo da cama, e isso solucionava fácilmente o problema. Mas eu tinha preconceito, acho, não gostava da idéia de sentar-me ali naquela coisa gelada e móvel, no meio do quarto e em meio a olhares curiosos.

Ainda sonho com esse banheiro. Uma pia com um pequeno espelho comum, um vaso sanitário e uma banheira muito escorregadia. Todos brancos. Ladrilhos hidráulicos no piso, como os da varanda e da cozinha. Eu gostava muito de tomar banho ali naquela banheira, mas achava a janela muito grande. Sempre pensava que alguém iria me espiar ou entrar, e trancava a cremalheira. Fazia da banheira meu escorregador particular. Mas logo batiam à porta e tinha de encerrar a brincadeira. Banheiro não era feito para brincar, eu ouvia, muito inconformada.



Ali na área havia um pequeno corredor que levava ao poço, ao tanque de lavar roupas e ao forno de assar pães, bolos, roscas de polvilho e cucas. O cheiro de polvilho azedava o ar e misturava-se ao cheiro da lenha verde, do sabão do tanque que lavava os tarros de leite, do vazio e água do poço, das cinzas e do carvão. Aquela passagem era das que eu menos gostava, pois os cheiros misturados tornavam a passagem fedorenta, e as aranhas eram encarregadas da decoração das paredes. Mas vivíamos ali xeretando novidades, pesquisando tudo que fosse divertido e interessante. Vovó não gostava nada disso e corria a gente dali.



Pela porta dos fundos entrava-se num pequeno vestíbulo. À direita a cozinha, à esquerda despensa. Na cozinha ainda havia uma outra pequena despensa, onde havia um armário guarda-louça e guarda-comida. Entrávamos lá sorrateiramente para roubar guloseimas ou biscoitos guardados em latas difíceis de abrir. Mas nem precisávamos nos aventurar, pois a mesa da cozinha estava quase sempre posta com coisas para comer. A cozinha sempre cheirava a salsinha, tempero favorito de minha avó. Fogão à lenha num canto, fogão à gás no outro, uma pia rústica de granitina e a mesa ao centro. Da janela via-se o grande pomar das laranjeiras e bergamoteiras.



Dos dias de "carnificina" eu guardo imagens tenebrosas. Galinhas penduradas no varal, pescoço sangrando dentro de um bale de alumínio. Sentada em uma cadeira com seu avental dos horrores, mangas dobradas e ar muito sério, vovó arrancava vigorosamente as penas da ave degolada - por ela mesma degolada - deitada ao seu colo. Depois viria o cheiro da penugem sapecada no fogo do fogão a gás, na cozinha. Em seguida, entrava em ação a faca amoladíssima sobre a tábua. E os cortes, miúdos e a carcaça dentro da bacia, com os pequenos ovinhos, que brigávamos depois para "pescar" com a concha na perfumada e consistente sopa de galinha servida no almoço. Bom, a carnificina tinha lá suas coisas boas. Nas frias noites de inverno da casa que gelava, eram a sopa, os travesseiros e os acolchoados de penas que nos deixavam quentinhos. E isso era realmente compensador.



A horta ficava à direita, era um dos lugares favoritos, mas a vovó era cuidadosa e só deixava a gente entrar lá depois de muita recomedanção para cuidar onde pisasse. Quem fosse descuidado seria banido desse verdadeiro paraíso da salsa e cebolinhas, alfaces, couves, aipim e muitas, muitas flores. Até as galinhas xeretas sabiam disso. Nada de ir ciscar na horta. Lá as minhocas eram de estimação, assim como as lesmas (que chamávamos de caramujos), abelhas e besouros. Infelizmente as lagartas não eram bem vindas. Era preciso primeiro trocar de roupa. Como borboletas elas tinham livre acesso do espaço aéreo e autorização para o pouso em qualquer flor. E assim as cores se multiplicavam.


Além da moradia, havia pomares, cocheira, galinheiros, chiqueiro, horta, milharal e muito, muito espaço para brincar e soltar a imaginação. Detenho-me na descrição por pura necessidade. Há muitas sensações que vão além do que se via. O tempo tinha todo o tempo de ser, ali naquele pedaço de mundo. Todas as horas eram viáveis, todas as luzes e sombras aconteciam, todas as brisas e farfalhares de folhas eram ouvidos, todas as superfícies tateáveis existiam. A palha de milho, a massa de pão, o barro mole moldado, a casca dos troncos das velhas laranjeiras, o tramado das cestas, a serragem na chocheira, o fofo pêlo depois da tosquia das ovelhas, a pluma, as penas, o couro, a madeira, a aniagem, os ninhos, o orvalho, a geada. Tenho tudo isso guardado na memória da palma da mão e da ponta dos dedos.
Há muito mais o que contar sobre a casa da Vovó. As memórias se entrelaçam, vão se multiplicando, impossível colocar um ponto final. Mas páro por aqui por enquanto, para aumentar ainda mais a minha vontade de continuar.

09 março 2008

Cena II

A menina de cabelos curtos tem 6 ou 7 anos. As Gêmeas, um pouco mais velhas, brincam em casa. Como faz todos os dias, ela pula o muro baixo e vai até a casa delas para brincar de bonecas. Fica ali durante a manhã.
A empregada chama para almoçar. A mãe ainda não chegou do trabalho.

- Sabia que as Gêmeas tão com cachumba? - diz a empregada à menina - Voce pegou cachumba delas!

Ela ouvira falar da doença, sim, aquela coisa que inchava o pescoço e fazia a gente ficar muito mais bochechuda. Mas bricar de bonecas não lhe faria mal. E ela nem havia sequer encostado na Gêmeas! Como "pegar" a caxumba assim?

- Não precisa encostar prá pegar caxumba. Foi lá, pegou. E, se voce está com cachumba, não pode pegar correntes de ar. Vai pro teu quarto, deita na cama e se tape bem.

A empregada certamente estava arrependida por não ter sido cuidadosa como a patroa lhe recomendara antes de sair...e aí a menina subiu rápidamente para o seu quarto, deitou-se e cobriu-se até a cabeça com o pesado cobertor. Mal podia respirar. Suava de medo. Será que suas bochechas já tinha inchado?

Não. Não poderia ir até o espelho do baheiro, la em baixo. Tinha que ficar quietinha ali. Nada de correntes de ar. Senão...senão o que? Nem queria pensar. Melhor ficar quieta e debaixo do cobertor. Será que a mãe já chegou? Só a mãe para lhe salvar dessa. Pensando bem, a mãe podia ficar uma fera. É mesmo, melhor ficar quieta.

E ali ficou por não se sabe quanto tempo.

Talvez esteja ali até hoje...

08 março 2008

Propaganda

Uma mulher de meia idade entra em uma espécie de pavilhão, com pé direito bem alto. Um piano - que não se vê - pontilha nota suaves. Ali, logo à frente, um enorme painel fotográfio. É uma foto sua e ela logo logo se espanta. Caminha em direção do que ve, olha para cima, calcula o espaço. Seu sorriso é enorme, é uma janela branca.Ela segue e encontra, em outra parede, outro painel, imenso, onde ela está com seu filho recém nascido. Ela se emociona e chora. O piano cresce. E assim ela continua, e encontra muitas outras fotos suas e de sua família. Um misto de curiosidade e emoção a fazem caminhar pelos espaços do pavilhão, abrindo passagens e visualizando novos painéis. Ali está ela com a mãe, pai e os irmãos, com os filhos, com o marido...como numa espécie de viagem no tempo os painéis aparecem sucessivamente nos espaços onde entra. Sempre enormes, imensos, em preto-e-branco. Parece que ela quer abraçá-los, tenta alcançar com a mão os rostos, como querendo traze-los prá dentro de si. Nas fotos ela está sempre sorrindo. Ao final, encontra-se com a família, que a surpreende, saindo por detrás de um dos painéis.

Não sei se minha descrição foi à altura do que vi. Parece-me que minha competência falha. Acho que a emoção às vezes faz a gente trancar. Bom, eu tentei.

Há momentos felizes na publicidade brasileira. Sou fã de propaganda bem feita, bem pensada. Aliás, sou fã de tudo que é bem feito (quem não?), e bem feito nos mínimos detalhes. Gosto de ver a sutileza ser personagem principal, mesmo que essa sutileza tenha cinco metros de altura. Poder notar que uma imagem contém uma lenda, e em poucos segundos constatar a importância dessa lenda na história de alguém. Ou constatar que é o vento invisível que faz a pipa balançar frente à um céu de brigadeiro.
Tenho olhos famintos de imagens que não estão lá. Minha memória reclama na justiça maus tratos e exige indenização.

É claro: há uma máquina atrás do filme de propaganda. Pessoas que estudaram para mexer com a gente, para nos emocionar e nos pegar desprevenidos para vender seu sapato novo. Mas algo me diz que devo separar as maçãs na cesta. O filme não é exatamente a propaganda e vice-versa. Ele vai muito além disso, quando atinge em cheio um coração. Não quero comprar nada, quero ver sómente aquilo que consigo ver com os olhos vendados. Do que eu ouvir, eu desligo o canal da hipnose e sigo a trilha florida da música, sempre povoada de lindas imagens.

Gostaria de ver painéis de mim mesma em paredes num pavilhão, daquele jeito como a propaganda mostrou. Eu diria até que isso é urgente. Preciso demais. Minha memória está pulverizada, fragmentou-se tanto que deixou de guardar o principal. E é preciso que eu veja tudo imenso, para sinalizar, marcar e poder fixar novamente.


Posso ser imensa, sim, como eu naqueles painéis. E aqui o tamanho é simbólico. Lembrar, fixar, marcar o meu caminho e todas os acontecimentos hiper-mega-importantes que me trouxeram até aqui, bem como visitar e resgatar as minha inúmeras micro-felicidades. Reviver meus mapas, revisitar a geografia de meus sorrisos mais sinceros, ressussitar as borboletas com as quais aprendi a estória da lagarta adormecida. Quero meu livro de história, ilustrado.

Vi a mim naquela mulher da propaganda. Sei que isso é o propósito, a intenção por trás da ilusão. E eu me vi ali mesmo sem nunca ter estado ali, estando ali. Borboleta teletransportada ao mundo do faz-de-conta, e a conta foi aberta, há nem muito tempo atrás.

(A propósito, o propósito: é uma propaganda de banco.)

Quero painéis imensos de mim à minha frente. Quero gratidões, reconhecimentos, molduras novas para obras-primas do meu museu arqueológico. Estou logo ali, na frente, escancarada e sorridente, espanando as memórias que guardei displicentemente em velhas prateleiras no esquecido quartinho dos fundos, que foi soterrado ates do vulcão adormecer.

Eu pendurada em paredes. Eu colada em outdoors. Eu em banners. Eu em balões de feira. Me quero ver lá.Nada mais justo. Eu mereço. Prá jamais esquecer o que fui, o bem que fiz e o bem que causei.


07 março 2008

Cena I

Uma pequena menina de cabelos curtinhos, pelos seus 5 anos, e sua bisavó de cabelos muito brancos, vestido largo, ancas e seios fartos, sentadas num velho banco de madeira sob uma árvore frondosa, numa manhã solarizada de um dia qualquer do passado atemporal. Moedinhas de sol no chão de terra batida, formigas cortadeiras prá lá e prá cá, carregando cortes de goiabeira.
A Nona - como a menina a chamava - a está ensinando a costurar uma saia para sua boneca. Uma agulha com linha branca, um retalho retangular de pano branco. Ela ziguezagueia cuidadosamente com a mão envelhecida, furando o pano e puxando, formando pregas. A menina, ajoelhada à sua frente, planta seus olhos sobre a costura, piscando muito, como se gravando quadro a quadro a imagem na retina, para que ela nunca se vá. E pede aos céus que as suas mãos entendam o que estão assistindo, pois suas bonecas precisam urgentemente de novas saias.
O tempo passa. Naquele pátio, debaixo daquela árvore, foram poucas horas. Talvez ali, na entrada da cozinha, ou nas escadas, elas sentaram-se mais algumas vezes. E destas, talvez costurassem casaquinhos ou calças compridas. Quem sabe até vestidinhos, para um enxoval ou viagem. Mas a imagem da Nona costurando aquela saia branca pregueada, cristalizou na retina e a acompanha até hoje.
De sua casa, sentada agora em cima do muro, noutro dia ensolarado qualquer, a menina via o entra-e-sai lá da casa da Nona. Muita gente de preto chegando e entrando na porta de frente. Todos se abraçavam, mas ela não conseguia ver os rostos, era longe. A mãe disse-lhe para ficar em casa e não ir para o pátio, sentar no banco sob a árvore. A Nona não estaria lá, ela tinha ido para o céu.
Sentada em cima do muro, com a maleta de roupas e a boneca no colo, olhando para o céu. Ela só via o azul.
Nas mãos, a agulha e a linha, espetada num pedaço de pano branco.

Cabelos

Quando pequena, tive sempre os cabelos curtos, como um menininho. Mas isso era por conta de minha mãe. Ela mantinha os nossos cabelos, meus e de minha irmã mais velha, sempre aparados à nuca. Era muito trabalhoso ter que pentear cabelos de menina, e ela, trabalhando fora, não tinha tempo para isso.
Mas eu sonhava em ter os meus cabelos compridos, como os das outras meninas. Queria correr e senti-los aerar ao vento. Queria usar maria-chiquinha nas festas de São João, prende-los com fitas coloridas ou apenas acordar com os fios longos emaranhados sobre os olhos remelentos e dorminhocos. Como Ronnie Von, queria uma longa franja para balançar, ao cantar. Há algo mais expressivo do que movimentar a cabeça e fazer os caracóis tentarem se soltar?
Sim, eram encaracolados e cor de melado. Meu pai os queria compridos, como eu. E ali começou aquela cumplicidade tácita, pois ele queria o mesmo que eu, mas cedia às ordens intimidadoras de minha mãe. Ganha a discussão quem tem a maior convicção, dizem. E ela sempre ganhava.
Eu fazia cara feia na hora de ir cortar, batia o pé. E minha mãe ali, firme. Amedrontada com aqueles puxões de orelha que meu irmão levava, me aquietava e seguia conformada ao cadafalso. Todos os fios que passassem do ombro seriam cruelmente decapitados, sem perdão nem choro que aplacasse a fome daquela nervosa e gelada tesourinha pontuda.
O pequeno salão que ficava aos fundos da casa de minha madrinha. Eu adorava ir até lá, a casa de minhas primas louras de cabelos lisos, sedosos e compridos, Maria de Fátima e Isabel Cristina. Elas também cortavam os cabelos, mas os delas cresciam rápidamente, ao contrário dos meus, que cresciam vagarosamente e teimavam ficar grudados à cabeça.
A cabeleireira se chamava Iris, como minha mãe, e tinha um olhar apertado e sorridente, sob bochechas sardentas sempre vermelhas, emolduradas por cachos também avermelhados. Eu gostava dela e de seu pente que fazia cócegas em minhas orelhas. Quando ela entrava em ação com sua tesoura, eu quase adormecia, tal a sensação gostosa de ter o cabelo penteado tão carinhosamente. Eu não queria cortar, mas me abandonava à aquela hora, numa espécie de viagem ao país do cafuné.
Quando acordava, depois do cessar do pente e do barulhinho metálico, me assustava com meus cabelos espalhados ao chão. Tinha vontade de juntá-los todos e levá-los comigo. Como eu podia ter deixado isso acontecer?
Olhava-me no espelho e pensava naquelas maria-chiquinhas que não teria no São João, mais uma vez. Minha mãe, na porta do salão, piscava o olho para Iris, e esta lhe sorria, com os dois olhos piscantes, com a vassoura e pá nas mãos.
E meus cabelos encaracolados no caracol da lata do lixo.

05 março 2008

Im-pressionada



Me tortura pensar no que eu deveria - ou poderia - estar fazendo ao invés de estar aqui. Mas volta e meia, meia volta, volta inteira, aqui estou. E nada me tira da cabeça que isso é uma questão de tamanho de janela. E, além do tamanho, o quanto de horizonte eu consigo enxergar através do nevoeiro além dela.

Ontem assistia na tevê a um documentário sobre a vida de Monet, aquele pintor que provocou a gênese de um movimento - nas artes plásticas - chamado Impressionismo. O locutor mostrava, então, um quadro do pintor, uma marinha com barcos, pontes e a cidade ao fundo, tudo imerso em um grande nevoeiro. Era uma paisagem "suja", mal se via ou conseguia distinguir as silhuetas do que era um barco, uma figura humana, prédios e outros elementos daquela pintura, devido ao efeito esfumaçado e pontilhado que ele havia trabalhado com seu pincel.

Parecia - e essa era a intenção - que o pintor não queria que nada ficasse definido, que o observador é deveria intuir sobre o que via ali. Não deveria haver necessidade de tradução, mas sim, capacidade de abstração por parte de quem a fitasse. As figuras assim, quase como derretidas, só mostravam o necessário para a sua compreensão, e abolia sua explicação mais apurada. Ele queria causar uma impressão - e o nome do quadro é "Impressão do Nascer do Sol" e daí vem o termo Impressionismo - de algo a alguém, mas não explicá-lo totalmente, para que quem o estivesse lendo naquela pintura pudesse interpretar, conforme a sua sensibilidade. E certamente isso estava destinado a quem fosse suficientemente sensível a esse recado meio que pela metade, mas totalmente inteiro na intenção de transmiti-lo.

Como um olhar.

Um olhar sem palavras, mas que dissesse tudo que se precisasse saber. Um olhar como uma luminosa vitrine, que ofereceria um alfabeto inteiro para quem soubesse como usá-lo para formar as palavras certas. Um olhar com uma paleta completa de cores. Um olhar que não oprime e não dita, mas sugere.

Tenho uma paisagem com nevoeiro diante de minha minúscula janela. Me esforço para perceber as mensagens sugeridas - vejo pouco, algumas luzes e sombras, silhuetas sem referências - , e faço isso com aquela agonia de quem sabe que há realmente algo para ser visto e compreendido. Sei que é para mim o recado, e mesmo que muitos o observem ao mesmo tempo e me dêem sua interpretação, eu sinto que não é bem isso.
Fecho os olhos ao meio, como que apurando o olhar para fixar um foco. Há algo além desse emaranhado que não consigo, por mais que tente, entender. Me prendo a detalhes, dicas, memórias, desconfianças, probabilidades. Vazo para não encher demais. O nevoeiro não cessa, e, surpreendentemente, a impressão que me vem é a mais cruel de todas: estaria eu desistindo?

04 março 2008

Pantufas cor-de-rosa

Meu herói Carpinejar falou de pantufas - e falou de um jeito tão engraçado que me pegou de surpresa. Ele foi muito radical com o fofo par de almofadas de calçar. Esculhambou, bateu as tampas das panelas, chutou a tampinha na calçada, deitou e rolou com a sua visão de homem inconformado com a podo-fantasia de pelúcia. Mas foi honesto, acho. A gente exagera tudo aquilo que destesta de paixão. E ele detesta as tais pantufas.

Tempos atrás eu comprei uma de ursinho para Anabela. Uma pechincha, 9 pilas, lá no Big em São Léo. Cor-de-rosa, é claro, gosto de puxar o saco da minha filha com estas coisinhas que nem tive. Aliás, meu mundo hoje é cor-de-rosa-artificial, sei que vai durar um breve tempo, mas até que eu gosto de fingir nessa cor. O rosa acalma, pacifica, torna as coisas mais leves e mais femininas. Mas não esqueço que o rosa é o vermelho abrandado com um pouco de branco. Todo mundo sabe que o vermelho berra, assusta. O branco atenua - ou enfraquece - a imponência do vermelho. Quando quero me aquietar, ponho um pouco de branco em mim.

O rosa é paixão atenuada, fogo que queima só as bordas das páginas de um livro. É suspiro de bolo, fica assim, só na aparência para uma provável foto. É algodão no final da limpeza da ferida, quando o sangue já estancou. Pantufas cor-de-rosa seriam próprias para quem está ao final da corrida, tentando acostumar a planta do pé saltitante a aterrisar novamente no asfalto.

Mas jamais me irritaria nem teimaria com pantufas. Não confundo bom-humor com elas, elas são o bom-humor, aquele bom-humor que se vê no conforto. Há quem se auto-ridicularize, se ponha à prova do algodão cor-de-rosa com olheiras só para ter com o que rir...o que tem de mais nisso? Rir ainda é saudável. Rir é confortável. E heróis não acertam todas.

Pijamas de flanela com bolinhas e pantufas de ursinho no sofá surrado, mais uma xícara de plástico cor-de-rosa - da Hello Kitty - cheia de nescau quentinho: isso é uma nuvem. Passageira, como todas as do céu que nos protege com sua grande palma da mão azul.