18 março 2008

A foto dentro do livro

Bodas de Ouro da Vovó e do Vovô, lá pelos idos mil novecentos e sessenta e tantos.

Salão paroquial cheinho de gente. Mesas encostadas umas às outras formavam um labirinto e nos provocava à correria, sem se importar em sujar a roupa domingueira. As toalhas brancas, os pratos, o cheirinho das saladas já a postos antes do churrasco. A parentada não parava de chegar.

Tinha aquela escada, encostada à parede, que ia à "cabine de som", lugar estratégico para ver todo o rebuliço lá do alto. Nos sentávamos nos degraus bem lá de cima. Lá em baixo, alguém com uma máquina fotográfica passava de mesa em mesa para registrar as ilustres presenças ao evento ímpar.

Cadê a Denise?

E lá estava ela, farejando a foto.

Colocava-se em posição atrás do alvo ou mesmo próxima a ele. Top-model acidental, um papagaio-de-pirata fazia vezes de periquitinho perto dela. Sorria. Seus óculos de "gatinho"já sorriam sempre, antes mesmo dela sorrir. Fazia pose, se sentada. E fazia o mesmo, se de pé. Tinha longos braços e longas pernas para fazer o que bem entendesse. Cruzar? Lançar um tchauzinho? Erguer o queixo? De perfil? Tres-quartos? Mão no queixo? Ou no cabelo? Na cintura?

Vaidosa, cuidava de sua imagem com o pouco que lhe havia disponível, não que isso fosse necessário à sua beleza natural. E nada de timidez. Ela sabia se insinuar com pouco barulho. Sua imagem provocava alegria. Ela estaria na foto para quem a quisesse ver, como um prêmio. Insistia para a foto ficar perfeita com a sua presença. Desafiava-se e fazia sua própria torcida. Ela estava ali para isso.

Denise e e seus óculos de gatinho. Olhos astutos, alegres, sonhadores. Olhos por trás dos óculos que escondiam a beleza verde e secreta da menina que roubava livros. Sim, esta é a verdadeira, pois aquela outra, título de livro, nem lhe faz cócegas. Além de livros, roubava de si mesma a presença e o som da própria voz, quando mergulhava de corpo e alma entre as páginas de qualquer coisa que pudesse ser lida. Adormecia no suave travesseiro da leitura. Cobria-se com páginas para não passar o frio do não saber. Esquecia-se de si, entregava-se à transfusão de sangue por letras. Transformava-se em imagem suspensa, onde apenas os olhos tinham status de mobilidade visível. Nem respirar se permitia. O ar entrava e saía por sua própria curiosidade. Só respirava fundo ao ler a frase final. Parecia até que dizia:

- Onde é que estou?

E nestas horas ela - também - esquecia de sua imagem aparente. Mas só nestas horas. E esquecia de mim, não própriamente de todo, mas da parte que de si fazia também. Eu lhe estalava os dedos à face, gritava "ei!", era cruel. Lembrava-lhe de descer, de voltar, de aterrisar. Puxava o fio. Não como favor, mas por puro egoísmo. Tinha ciúmes de todos os livros que caíam-lhe às mãos. Tinha medo de perdê-la dentro deles, que eles a abduzissem para sempre e ela virasse sómete um conto ou lenda e minha vida.

Difícil concluir isso aqui. Vou deixar em aberto, a porta aberta, para poder retornar. Muito de mim está com ela e muito dela eu tento ainda assimilar. Seria clichê afirmar que um fio nos une ou que somos duas metades de uma laranja. É bem mais do que isso e bem mais do que eu possa tentar explicar. Nunca vou acabar, mesmo quando conseguir terminar.

Nenhum comentário: