13 março 2008

Cena III - Pecados e segredos

Uma tardinha qualquer, em Tres Portos, Sapucaia. A menininha brinca com seu irmão mais velho em frente à sua casa. Não havia rua pavimentada, nem calçada. Era rua de chão batido, esburacada. Ela gostava de ver quando a patrola passava com sua imensa pá que nivelava a rua. Ela ouvia o barulho e corria para o portão para olhar aquele gigante amarelo, com aquelas rodas enormes. Só detestava lembrar do apelido que seu primo - logo ele, seu amigão! - lhe dera, "pneu de patrola".

Havia grama ao invés de calçada. E uma valeta rasa, onde escoavam as águas nos dias chuva. Muitos sapos habitavam aquela estreita fenda, e por vezes, quando a água acumulava e desanuviava, podia-se ver os minúsculos girinos. Os girinos eram caçados pela gurizada impiedosamente, para muitas experiências, muitas delas fatais. Potes, garrafas, coadores de cozinha "emprestados": tudo isso virava material do nosso laboratório doas horrores experimentais. Éramos tão puros!

E isso nem era coisa só de meninos. Ela mesma era muito corajosa, e até havia pego juntamente com o primo alguns grilos que pulavam na grama do jardim e arrancado as suas pernas. Causava-lhe nojo e repugnãncia tocar naquelas patas peludas, mas fazia. Era engraçado ver os coitados sem as pernas, assim como era muito engraçado pegar as folhas das formigas cortadeiras e ve-las caminhando no ar. Mas os girinos...ah, esses aí eram muito mais divertidos que os grilos e as cortadeiras. E nem sabia dizer o por que disso.

Um dia ela brigou com o irmão por causa dos girinos. E foi feio. E acho que foi a primeira vez que se arrependeu de algo na vida. E também a primeira vez em que acertou um alvo. A primeira e única vez que machucou alguém, deliberadamente.

Ele estava lá, sentado na pontezinha de madeira sobre a veleta, pesquisando solitáriamente seu conteúdo vivo. Ela quis participar da brincadeira. Mas o seu irmão não a queria por ali e a afastou, gritando para não se meter onde não era chamada. Magoada, ela estava dirigindo-se ao portão da casa. De repente, ela viu a pedra. Uma pedrinha pequena, destas que se coloca aos montes no chão para evitar o barro na entrada das casas. A pedra foi parar na sua mão e, sem pensar e mais nada, dominada pela raiva que sentia, atirou com toda a sua força na direção do irmão, que estava de costas. E não é que ela o acertou bem na nuca?

Foi uma gritaria e uma correria. O sangue escorria. O irmão, incrédulo, a acusava e chorava, com a mão ensanguentada. Ela, apavorada e imóvel como uma estátua, totalmete incrédula de sua ação. "Foi sem querer!", gritava. A mãe veio ver o que acontecia e logo foi tratando de cuidar da ferida. A sua sorte era que o irmão tinha a fama bem maior do que a sua, que era considerada a quietinha da família. Ele já havia caído de cabeça do abacateiro e aquele sarrafo que prendia o balanço caíra em cheio na sua cabeça... mas ela chorava de arrependimento do seu ato impensado, pois jamais acharia que realmente acertaria o alvo. Aquilo de atirar a pedra foi uma extensão de sua raiva, nada mais do que isso, não queria mesmo machucar ninguém!

Se houve um castigo depois disso, por parte de sua mãe, ela não lembra. Seu castigo foi nao esquecer jamais disso, de como sua raiva havia lhe dominado. Por mais que fale e escreva, a imagem está lá. Muitos foram os relatos às tias e aos primos, com até uma ponta de orgulho, depois, por sua coragem. Mas ela nunca concordou com o feito. No fundo ela se envergonhava disso tudo, assim como se envergonhava toda vez que Rubens a encontrava e gritava prá todo mundo ouvir:

- Essa daí come meleca de nariz, escondida!

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