07 março 2008

Cabelos

Quando pequena, tive sempre os cabelos curtos, como um menininho. Mas isso era por conta de minha mãe. Ela mantinha os nossos cabelos, meus e de minha irmã mais velha, sempre aparados à nuca. Era muito trabalhoso ter que pentear cabelos de menina, e ela, trabalhando fora, não tinha tempo para isso.
Mas eu sonhava em ter os meus cabelos compridos, como os das outras meninas. Queria correr e senti-los aerar ao vento. Queria usar maria-chiquinha nas festas de São João, prende-los com fitas coloridas ou apenas acordar com os fios longos emaranhados sobre os olhos remelentos e dorminhocos. Como Ronnie Von, queria uma longa franja para balançar, ao cantar. Há algo mais expressivo do que movimentar a cabeça e fazer os caracóis tentarem se soltar?
Sim, eram encaracolados e cor de melado. Meu pai os queria compridos, como eu. E ali começou aquela cumplicidade tácita, pois ele queria o mesmo que eu, mas cedia às ordens intimidadoras de minha mãe. Ganha a discussão quem tem a maior convicção, dizem. E ela sempre ganhava.
Eu fazia cara feia na hora de ir cortar, batia o pé. E minha mãe ali, firme. Amedrontada com aqueles puxões de orelha que meu irmão levava, me aquietava e seguia conformada ao cadafalso. Todos os fios que passassem do ombro seriam cruelmente decapitados, sem perdão nem choro que aplacasse a fome daquela nervosa e gelada tesourinha pontuda.
O pequeno salão que ficava aos fundos da casa de minha madrinha. Eu adorava ir até lá, a casa de minhas primas louras de cabelos lisos, sedosos e compridos, Maria de Fátima e Isabel Cristina. Elas também cortavam os cabelos, mas os delas cresciam rápidamente, ao contrário dos meus, que cresciam vagarosamente e teimavam ficar grudados à cabeça.
A cabeleireira se chamava Iris, como minha mãe, e tinha um olhar apertado e sorridente, sob bochechas sardentas sempre vermelhas, emolduradas por cachos também avermelhados. Eu gostava dela e de seu pente que fazia cócegas em minhas orelhas. Quando ela entrava em ação com sua tesoura, eu quase adormecia, tal a sensação gostosa de ter o cabelo penteado tão carinhosamente. Eu não queria cortar, mas me abandonava à aquela hora, numa espécie de viagem ao país do cafuné.
Quando acordava, depois do cessar do pente e do barulhinho metálico, me assustava com meus cabelos espalhados ao chão. Tinha vontade de juntá-los todos e levá-los comigo. Como eu podia ter deixado isso acontecer?
Olhava-me no espelho e pensava naquelas maria-chiquinhas que não teria no São João, mais uma vez. Minha mãe, na porta do salão, piscava o olho para Iris, e esta lhe sorria, com os dois olhos piscantes, com a vassoura e pá nas mãos.
E meus cabelos encaracolados no caracol da lata do lixo.

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