25 julho 2010

a casa abandonada

Na volta do colégio havia uma casa abandonada.

Aquilo era engraçado: a casa abandonada só existia na volta do colégio. Na ida, às 7 da manhã, ela não existia para os meus olhos. Estava lá, no meio do caminho, incrustrada na paisagem matinal e etérea daquela rua em aclive constante, mas simplesmente não existia. Para existir, era preciso que eu a visse, que a enquadrasse com meus olhos curiosos, mas meus olhos às 7 da manhã só contavam as lages de pedra das calçadas, meu caminho corrido e percorrido rápidamente em direção ao colégio.

Talvez, em todas aquelas manhãs, a casa dormisse, tal qual a minha vontade. E, se dormindo, se aquietasse e se tornasse invisível pelo seu silêncio. Casas abandonadas sempre fazem barulhos específicos. Zunidos, estalos, vidraças balançando com ventos repentinos e inconstantes ou mesmo o bater de asas de algum morcego solitário. Casas abandonadas murmuram e soluçam. Casas abandonadas chamam.

E aquela casa me chamava. Talvez me chamasse na ida, mas como eu não a via, tampouco a ouviria. Mas na volta, eu sempre a ouvia e via. Ouvia o chamado dela, e ela me dizia "venha me visitar, estou te esperando!", e todas as suas janelas fechadas pareciam piscar para mim. Eu podia até ouvir o rangir do portão que não abria fácil, era emperrado, mas, uma vez feito de ferro torneado, nem precisava abrir para ranger. Portões de ferro torneados e enferrujados contém rangidos em si mesmos, são ranzinzas por natureza. E a impressão que eu tinha era que aquele portão me odiava.

Muitas vezes atravessei corajosamente o portão ranzinza, na volta do colégio. Eu o empurrava com força e ele rangia alto. Ao entrar, vislumbrava o tronco rugoso de um grande antigo jacarandá, cujas flores caídas na calçada coloriam o meu caminho. Então, eu andava pelo corredor lateral e seguia até a varanda, e ali sentava nos seus degraus sujos. Ficava ali sentada por um tempo que não me preocupava em contar, pois, afinal, aquele era um tempo que só existiria mesmo para mim e para mais ninguém. Quando eu saía dali, ou saía dela, sempre me despedia com o meu olhar. Eu sei que ela sentia isso, eu a olhava com carinho, e no meu olhar havia a promessa de retorno. Sair dali era difícil, ela me segurava, como se tivesse longos e macios braços. Ao passar pelo portão ranzinza eu o ouvia dizer "vá logo, vá embora daqui!". Eu ria por dentro.

Hoje eu vejo que, sem saber, eu a entendia. A casa abandonada vivia para dentro de si. Nunca havia entrado dentro dela, mas podia imaginar como eram seus quartos, suas salas, seus compartimentos secretos. Eu admirava a velhice de suas paredes descascadas e cheias de rachaduras, seus beirais incompletos semi destruidos, seu piso desgastado pelo muito pisar. A janela do sótão era menina, ela cantava. Se houvesse um porão, era dele o ronco que ouvia vez ou outra. E de sua cozinha, capturava no ar os resquícios dos antigos cheiros da salsa e dos assados com batatas no forno a lenha.

Muitas almas ali varriam com o vento as folhas das antigas árvores do pomar, pois casas assim sempre teriam flores e frutos no seu jardim. Os aromas dos frutos faziam parte dela , o jardim florido fazia parte dela, a pequena horta fazia parte dela. Tudo, além dela mesma, era ela e ainda ali ainda residia, mesmo que só na memória da casa abandonada.

A casa tinha muito a me contar e me contava aos borbotões, em partes desencontradas. Eu juntava as partes pacientemente. Histórias de homens, de mães e seus filhos, seus netos e bisnetos. Histórias de nascimentos e mortes, de chegadas e partidas, de alegrias e tragédias. Histórias de amor, de ódio e de solidão. E eu via e ouvia. E eu a sentia. O hálito da casa era doce. Mas não conseguia guardar nenhuma de suas histórias. Era ela a falar e falar, sempre, e eu a ouvir e ouvir. Muitas vezes o meu silêncio a aturdia, a deixava aflita. Mas eu não tinha nada para contar, era muito jovem e sabia quase nada da vida de uma casa.

Muitas visitas minhas à casa aconteceram. Lá eu nunca me sentira só, nem com fome, nem sede, nem nunca sentira medo. A casa tinha lá seus mistérios, seus achaques, seus fantasmas que a incomodavam e lhe tiravam ainda mais o viço. A cada dia ela se acabava, parecia que sua energia lhe escapava, e era disso que ela precisava, da energia da minha presença, que a cada dia depositava ali. Eu me sentia livre dentro daqueles muros, ela ceitava que eu me sentisse livre e reconhecia a minha liberdade. Sem mesmo me ouvir, nem saber quem eu era, generosa, ela me acolhia e deixava-se habitar. Compartilhava-se um bem que não se sabia, era mútuo, e seria quase eterno.

Um dia a casa foi demolida. Uma demolição rápida, pela manhã. Amanheci, fui ao colégio e na volta ela agonizava. Parei à frente, incrédula. So existia ainda a fachada, sem as janelas que piscavam. Deixaram-na nua e eu vi o seu vazio interno, vazio do qual ela tanto se envergonhava. O telhado reduzido a uma pilha de lenha e cacos de telhas e eu ouvia o barulho de motosserras, vindo lá dos fundos. Paralisada, olhei para o portão ranzinza e este me dizia "vá embora!", mas eu fiquei ali, solidária, ainda tentando ouvir o chamado da casa abandonada, para que eu entrasse.

Mas ela não me chamou. Nem quando a motosserra parou eu a ouvi chamar. Homens rudes e desconhecidos circulavam como autômatos e empilhavam coisas, restos seus, grandes tijolos. Eu olhava as pilhas e reconhecia cada um dos pedaços. Uma máquina entrava pelo muro semi-destruído e arrastava as muretas dos canteiros e os pequenos arbustos que já haviam sido arrancados. Só o antigo e enorme jacarandá da entrada parecia estar incólume e talvez estivesse sendo poupado. No dia seguinte, nada mais existia, nem o portão ranzinza. Só o jacarandá triste e opaco, sem as suas flores.

Eu já não tinha mais onde parar na volta do colégio. A ida e a vinda se tornaram uma coisa só, um tropeço, um cansaço, uma coisa enfadonha e totalmente sem graça. Nem a curiosidade me movia os olhos, mesmo sabendo que a casa nova e moderna se erguia em volta daquele jacarandá, que o mantiveram, talvez, em sinal de respeito à memória daquela que a havia precedido. Mas eu não reconhecia mais o meu caminho, estava perdida na volta. Eu procurava os sinais do tempo e não via além das pedras das calçadas.

Na volta do colégio, perdida no vazio de um tempo que nunca existiu a não ser para mim mesma, naquela casa abandonada.




2 comentários:

alhos e bugalhos disse...

Andrea querida!
me identifiquei com teu texto ...
tenho este sentimento em relação a Livraria do Globo na nossa Rua da Praia. Me nego sequer a olhar aquela loja horrorosa, comum e insensível que teve a coragem de tapar as maravilhosas grades do mezanino ...
abraços,
Mara

marli disse...

Andrea querida,
todos os textos de alguma forma, tocaram meus pontos mais fracos ou mais fortes, não sei bem...o que sei é que me caíram como uma luva nestes dias tão frios.
Você está certa quando diz q é única e insubstituível.
grande beijo.