11 abril 2008

a chave

Lá estou eu, no passado, à minha espera.

Calça jeans debotada, melissinha com meias "soquete", bata indiana, perfume de Patcholy e o cabelo caramelado cacheado puxado para trás das orelhas, preso dos dois lados da cabeça, com "passadores". Estou de pé, pernas cruzadas, encostada no Gol branco, carro emprestado da minha mãe. Devo ter uns...19 anos. Estou no segundo ano da faculdade de arquitetura.

Me vejo lá no estacionamento, impaciente, como se esperasse alguém. E espero com a minha impaciência cega. Tenho um envelope nas mãos e o canudo de projeto pendurado às costas. Tenho pressa acho, sou ainda muito jovem. Apuro o olhar entre as nuvens do tempo: posso ver daqui que o envelope está endereçado a...mim! É uma carta para mim!

O problema é que eu não consigo me ver para poder entregar a carta que tenho as mãos. Sei que estou lá, em algum lugar, me observando e esperando. E isso é muito importante, disso dependerá meu futuro. Dentro dessa carta está uma chave. Só com ela eu poderei fazer contato comigo no futuro.

Cansei de esperar, anoiteceu, preciso voltar para casa. Estou aflita e confusa. Tenho lapsos de memória prévia, mas tudo ainda está muito vago. Vejo tudo tão nítidamente confuso! Seria isso mesmo? Será? Preciso me encontrar e me entregar a chave da outra porta!

Eu ali, tão jovem, tão senhora de mim, tão decidida, dando as costas para minha falta de visão. A minha pressa me rende. Sou jovem e tenho pressa. Entro no Gol e volto à casa de meus pais. E aquele envelope com a chave escorrega e se perde entre os papéis na pasta de desenhos.

Aqui estou eu agora, no presente, do alto dos meus quarenta e muitos, igualmente impaciente. Os cabelos deixaram os caracóis caramelados dos 19 e deixam agora uma franja cair sobre a testa. Os cabelos mudaram, mas sou eu a mesma que os penteia, ainda para trás. Cai também a pálpebra, o sorriso e outras partes escondidas de meu corpo. Ainda uso jeans, mas escondo artificialmente o que me cai naturalmente.

Minha cegueira dos 19 continua em mim. Ainda não me vejo mais. Aquela carta com a chave do meu futuro ficou perdida no espaço, solta na pasta que há muito se esvaziou.

Nunca soube o que eu quis que eu soubesse.

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