10 abril 2008

Cena na rua Três Portos

Nunca soube onde a rua terminava. Nunca cheguei a ir até lá. Só lembro que via um mato de eucaliptos naquela direção. A maior distância que havia percorrido era o equivalente a umas duas quadras. E, com pouca certeza destas distâncias, pois criança vê tudo muito grande, digo que não sei quem armou aquilo, naquela tarde que nem lembro como era, lá quase no final da rua Três Portos. Alguém armou um buscapé com um rojão em baixo de uma lata de conserva, e aquilo fez aquele estrago na perna da Márcia.

Estávamos todos a rua, brincando. Todos de chinelos havaianas, ou mesmo descalços, de roupas curtas, camisetas sem mangas, empoeirados da rua de chão batido que não via chuva há semanas. A rua era também o nosso jardim. E o meio da rua era palco de exibição dos buracos e seus pedregulhos, bem como daqueles que de nós se mostravam mais corajosos, cheios de novidades e artimanhas.

Artefato armado, palito de fósforo aceso, grito de alerta e muita correria. A brincadeira infanto-juvenil tinha só por limites a imaginação sem limites. Sabia-se que vinha um estouro forte e era preciso tapar os ouvidos, só isso. Mas, numa atitude mais dramática, nos abaixamos, eu e Márcia, buscando proteção sem achar que dela precisássemos, afinal, aquilo tudo era alegria de livre-brincar. E a nossa proteção também fazia parte da imaginação. Era um escudo invisível acima de nossas cabeças, ambas de cabelos curtos e idéias também curtas. Idéias de meninas curtas na altura e na idade.

E a explosão veio, como esperávamos ansiosamente que viesse. Mas a escutamos baixo, de tão apertadas as mãos nas orelhas. Mas a tampa da lata que tinha sido aberta por um abridor de latas, e que ainda estava presa à ela, destacou-se do resto e desceu, sabe-se lá a que velocidade, até nós. O alvo foi a coxa de minha irmã mais velha, que estava agachada ao meu lado, de olhos fechados e mãos tampando as orelhas, debaixo daquele escudo invisível que ambas pretendíamos que existisse.

Assim como o trovão vem depois do relâmpago, o grito de Márcia veio depois do que ela viu. E ela viu a carne da sua coxa serrada, aberta pelo projétil-tampa-voadora. A tampa fez outra tampa na perna de Márcia. Uma grande tampa mole de pele, carne e sangue.

Niguém sabe, ninguém viu. Corremos para casa, eu e ela, apavoradas. Ela chorando e gritando, mortificada pela dor e pela crueza da infame brincadeira dos amigos que estavam alheios ao acontecido. Eu corria às escuras pela rua empoeirada, tentando ser solidária à minha irmã naquela hora de dor. Ela corria à minha frente e essa a imagem recorrente de sempre. Márcia corria e gritava.

A brincadeira, o dia, a dor, o lamento, o castigo, o pó da rua, o mato de eucaliptos, Márcia correndo e gritando com a perna sangrando. Tudo aquilo ficou imortalizado na forma de uma feia cicatriz disforme na coxa de minha irmã, a qual a carrega consigo até hoje, com certo orgulho, como cicatriz de guerra. É bom saber-se vivo depois da batalha e ter provas de nossa coragem para cantar pela vida afora.

Falta em Márcia um pequeno pedaço de si que ficou lá na rua Três Portos. A mim faltaram um pedaço de braço, de coração, de pernas, de coragem para alcançá-la. Fiquei para trás, olhando por trás. Acho que queria compartilhar-me com ela, oferecer-lhe a minha pele, a minha parcela de suporte à dor. Mas faltou-me consciência e idade para entender como fazer isso. Eu era uma menina de pernas curtas, idéias curtas, cabelos curtos.

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