07 abril 2008

borboleta e mel

Manhã sonolenta. Dia sem cor. Manhã no automático. Noites sucessivamente mal dormidas. Pestanas quase coladas às bochechas. Vontades suspensas e outras esquecidas. As horas viriam a partir daquele instante, sem perdão.

A cafeteira choraminga seus orvalhos sobre um café que espera e espia através da lente grande angular da jarra de vidro refratário. Todo o vai-e-vem na cozinha fica registrado no vácuo do vidro refratário. Jarras de cafeteiras podem contar estórias escabrosas de cozinhas e seus cafeteiros criminosos. E café que não espera não é café.

Duas fatias de pão escondem sorrateiramente a fatia dupla de queijo. E no pão pequenos e lustrosos grãos de linhaça estão prontos para o terror que há de vir da sanduicheira, aquela boca dentada sem garganta e insuportávelmente quente. Todos morreriam, todos eles. Natureza morta de grãos torrados incrustrados no queijo derretido, ao dispor de uma boca que ainda sonha com sua própria saliva no travesseiro. Mente quem diz que travesseiros não têm gosto.

Da torradeira ao prato, lá se vai o sanduíche no trêmulo elevador da espátula. A faca-cega-ninja nem pensa e o semi-esquarteja em cruz. A jarra desce seu conteúdo negro e fumegante na velha xícara do gato eternamente sorridente. A colher afoga a cabeça e gira. Então ela puxa a pesada cadeira, desaba ali o seu corpo torto e o seu olhar fixa no olhar do quadro luminoso da janela à sua frente.

Uma mordida, um gole, tudo mecânico. O comprimido pela metade e um outro inteiro no meio de tudo. E assim sucessivamente, até que o vidro da vidraça se derreta no vítreo do olhar. O gato sorridente reclama, o café vai secar. O prato ainda ri do último pedaço do sanduíche mal cortado, já frio. Mas seu olhar está lá na janela e não vê o vazio semi-transparente do fundo da xícara. Lá, além do quadro da janela está o nada. E além do nada, o varal. E além do varal, o muro. E além do muro, quem sabe, há vida.

O olhar vidrado sempre pede um socorro mudo. Uma mágica de inseto, uma pequeníssima borboleta, mostra um possível e invisível rastro de fuga. O olhar pisca, uma, duas, tres, um sem número de vezes, até focalizar aquilo que já não está lá, nem no nada, nem no varal, nem no muro. A borboleta e seu rastro a resgatam para si mesma. Com êxito, resiste à auto-hipnose e volta-se para o fundo da xícara e para o prato.

Aquela janela, aquela armadilha matinal, apenas dava luz ao espaço que inexorávelmente ali residia, mas não existia. O Nada, o varal e o muro, existiam num tempo que nem de sol se valia. Como acreditar? Que tolice! O olhar no prato, mais uma vez, uma última vez, pois é hora de partir. O último pedaço do sanduíche e a boca ardia. Então, como se disso dependesse a manhã, a suave mão generosa pousou ali dois pingos de mel.

"É preciso dar a luz para quem dela necessita", ela pensou. Seu olhar agora veria ali dois olhos dourados fixos nos seus. Sua boca sorriu por dentro e quis também seu sorriso de mel. Sua mão cedeu ao sorriso e, completando o desejo do olhar, cedeu também à boca o seu bocado de mel.

Pronto. Ao mastigá-lo, teve olhos e sorriso dourados lançados dentro de si. Seriam a sua arma secreta, seu trunfo, seu ás econdido na manga. Acreditaria com fé cega que isso mudaria o destino das horas, e que assim sustentaria sua vontade, seu prejuízo e seu ânimo naquele dia sem cor.

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