08 agosto 2010

Só mais uma




Hoje, dia institucionalizado para festejar a existência de um pai, lembrei-me do meu, que já não está perto dos meus olhos. E não é porque hoje se comemora isso, mas aqui bateu uma grande saudade desse cara. Coisa natural, "a saudade é o amor que fica" - li isso por aí - e eu amava demais o meu pai, como toda menina ama um pai. E a minha saudade tem um coração que bate forte, a minha saudade grita alto, a minha saudade acena, pede para eu parar tudo e escrever sobre ele.

Tenho quase cinquenta anos e muito dele eu vejo no meu espelho. Nem falo do que vejo de fato, aquilo que eu posso tocar com a ponta dos dedos, apesar de sabê-lo. Falo da imagem que eu própria construí, baseada nele, físico e alma. E dele eu herdei o olhar caramelado-esverdeado que sorri e que enxerga coisas invisíveis, as bochechas salientes que seduzem mesmo sem querer, o toque artístico possível das coisas ordinárias, as manias do fazer com as mãos e de achar que tudo pode ser diferente. Também vejo que trago em mim aquela sua melancolia irremediável e flutuante que por vezes afasta de mim a minha - ou a nossa - verdadeira essência.

Meu pai, um cara de essência alegre e jovial, era alto. E quando se é pequeno os altos parecem gigantes. Ele era um gigante. E aos seus trinta e poucos passava uma imagem bonachona. Gordo e forte, mãos grandes, a única vez que senti a sua raiva num tapa em meu traseiro de criança foi lá pelos meus 5 ou 6 anos, quando eu esmurrava e chutava a porta do banheiro, gritando para meu irmão mais velho sair logo, pois eu estava apertada para fazer xixi. Nunca discordei daquele seu ato violento e o relembro com respeito. Ele era meu pai e me ensinava. Depois ele me oferecia seu colo e o mundo poderia desabar ao nosso redor, que eu estaria sempre a salvo.

E foi nessa mesma época que ele comprou aquele gravador cassete e gravou a minha gargalhada. Ele gargalhava e adorava gargalhadas e gostava da minha. Lembro bem daquela cena. Ele, minha mãe e eu, sentados no sofá da sala, falando um monte de bobagens e rindo, rindo muito. E ele gravou tudo numa fita cassete, no gravador novo. E ouvir a gravação por sucessivas vezes nos fazia rir ainda mais. Ouvíamos, ríamos muito e passávamos tudo para trás novamente, para ouvir de novo e de novo. Ao final, suspirávamos, cansados de tanto rir. "Ai, ai", a gente dizia. E ainda havia tempo para mais uma risadinha.

Aaaaaaai, aaai, lá em cima e lá em baixo, eu minha vozinha fina de menina apaixonada pelo pai e pelo momento que ele me proporcionava, nem lembro se manhã ou tarde ou noite, num dia lindo de minha infância.

Ai, ai.

Queria mais uma, pai, só mais uma. Só mais uma vez, passar a fita toda para trás, começar de novo, ouvir tudo de novo, rir e gargalhar. Só mais uma vez ouvir a sua gargalhada e rir até fazer xixi nas calças. Só mais uma vez, me sentir segura no seu colo e ver o mundo desabar sem medo de nada.

Aaaaai, ai. Só mais uma vez, pai, só mais uma...

2 comentários:

Helena disse...

Querida, lindo texto, me reportou à minha infância, me fez chorar...mas de alegria! Tempos bons! :)

Helena disse...
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