02 abril 2008

Marilene ri

Almoço de domingo.

Mesa posta na sala, com toalha recém tirada da gaveta, toalha de domingo, alva, cheirosa, lisa, imaculada. Santa toalha domingueira entediada de tanto dobrada na gaveta dos milagres impossíveis daquele armário viajado-recauchutado, agora deitada sobre a lustrosa mesa de madeira de açoita-cavalo, nome rude e ecológicamente incorreto, quase um pecado impronunciável.

Nada de bordados, uma toalha de mesa comum, mas elegante em seus discretos desenhos azuis e rosas. Mesas de domingo devem ser como altares em missa de domigo, eu sentencio aqui, do alto da minha eterna e quase religiosa mania de perfeição crônica.

Bifes à milanesa, purê de batatas, arroz branco e uma salada colorida pontilhada pelo verde oliva de robustas azeitonas. Todos servidos em impecáveis e inoxidáveis recipientes da baixela presente longa-vida de casamento. Guardanapos de papel, palitos, azeite, sal, vinagre. Almoço de domingo é ritual. E que Deus esteja presente e pairando sobre essa toalha, pois Deus é branco e invisível.

Antes disso, horas na cozinha improvisada, da casa que não é minha, mas que faço minha por uma questão de urgência de teto e de paz. Cozinhas deveriam ser templos. Cozinhar também é rezar.

Os azulejos perfurados ainda cantam as canções dos armários que se foram com o último que aqui esteve a cortar e picar, armários que não quero tão altos pois meus curtos braços só podem alcançar e abraçar as maçãs que dormem no andar de cima do cesto de plástico ordinário. Meus curtos braços quase sempre apoiados sobre o gelado balcão da inclinada pia que pinga, cansados de tentar proezas não reconhecidas. O silêncio nunca me disse que o elogio é mudo.

Meus braços ainda se negam a cruzar sobre si mesmos, em protesto pela falta de portas. E o hábito do avental de morangos bordados, costurado e presenteado pela amiga ausente, parece nostalgia, mas não é. O avental ri de tudo isso como Marilene riria e esse riso ecoa pelos azulejos e dá brilho ao fogão e à geladeira.

Uma alma que ri é a cortina da janela da agora minha cozinha. Assim, crio forças e ergo a faca, como se fosse a espada do Reino, e dou as ordens de ataque nessa santa guerra do pão nosso de cada dia.

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