24 abril 2008

pânico

Minha vizinha da frente bateu à minha porta na noite passada, ainda de camisola, e agarrada à mãozinha da filha muito assustada. Ela chorava e tremia, numa palidez de espantar qualquer fantasma distraído que porventura ali passasse. E distraída eu abri-lhe o portão e a convidei que entrasse em minha casa, sem nem me preocupar em querer entender o que se passava, pois já o sabia muito bem.

Quando o pânico vem, é sem aviso prévio. Um verdadeiro terror para quem a carrega em si. Choro, calafrios, pensamentos mortíferos e mortais, aceleração cardíaca repentina, suores frios, dormência nas extremidades dos membros, náuseas, tonturas, rigidez do maxilar e medo...muito, mas muito medo.

E é assim que ela chega. Podemos estar em um aniversário, na estrada dirigindo, no cinema, na academia, na aula, na praia, na rua, na chuva, na fazenda: ele chega e toma conta, se enrosca feito uma cobra em nosso corpo e nos paralisa. A cabeça começa a destilar milhares de pensamentos simultâneos tão impossíveis quanto achar que aquilo tenha um fim. Perde-se a noção do espaço e do tempo, e o horizonte se torna um ponto preto e distante.

Minha vizinha chorava muito e me pedia socorro com os seus grandes olhos molhados. Os braços em cruz sobre o peito pareciam querer segurar seu coração, para que ele não lhe escapasse e um carro saído do nada o atropelasse e esmagasse no meio da rua. Magra, viúva, pequena, dolorida, frágil, só. E foi a mim que procurou para socorre-la naquela noite. Lembrei de minha amiga Rê, que sempre me socorria naquelas horas.

A primeira coisa que Rê fazia era me fazer sentar em seu sofá e me oferecer um copo dágua. E então ela começava a conversar, a me fazer mil perguntas e também a falar sobre os seus tantos problemas existenciais. E eu ia na sua lábia enquanto tremia e suava, com o copo dágua na mão. "Bebe tudo devagar", ela me dizia. E já pegava seu aparelho de medir a pressão e o colocava no meu braço. "Tá alta, mas já vai baixar", e eu só tinha a esperança que ela gentilmente me oferecia.

Nem lembro quantas vezes ela me atendeu, pacientemente. Solidarizava-se com todo aquele meu estranhamento àquela coisa que eu nem sabia ser uma doença já tão comum. Mais adiante descobri muitos conhecidos que padeciam do mesmo mal, e isso quase me consolava. A questão era: por que? De onde vinha aquilo? Por que eu?

As respostas destas perguntas eu não tive, sómente convivi com algumas desconfianças por uns tempos, o que não me levou a concluir nada. Precisei aceitar o fato da doença estar em mim para reunir forças contra ela. Vieram os remédios e minha incursão por terapias alternativas. Tudo o que fazia me indicava novas dimensões de prováveis crimes praticados contra mim mesma. Eu pretendia ser mais do que realmente podia ser, e me castigava por não conseguir.

Minha vizinha não quis entrar em minha casa. Pediu-me então que deixasse a filha pequena e que a acompanhasse até a sua. "Não gosto que minha filha me veja assim", ela me disse, e de fato, lembro que também não queria que meus filhos igualmente me vissem em plena crise. Sentia-me envergonhada. Vergonha de parecer mortal? Pode ser. Para meus filhos sempre pretendi ser uma super-mãe poderosa, que nada pudesse atingir. Pequenos, não iriam entender nada. De onde vem o medo? De onde vem o choro, mãe? E a tristeza?

Não era hora para estas descobertas. E não seria eu que faria esta revelação à eles, em plena crise.

A solidão, acho, provoca-nos estados de alma incompreensíveis. E falo aqui até daquela solidão que parece não existir, aquela que acontece quando estamos no meio de uma multidão. Sós, na forma de estar só, como se é só no escuro meio de uma animada platéia de cinema ou numa longa e mau-humorada fila de banco. Há muitas formas de ser e estar só, mesmo com muita gente ao redor.

Nestas horas o espaço torna-se tão pequeno, assim como os horizontes tornam-se pontos quase invisíveis. E os sons, as falas, os compromissos, as tarefas diárias, os acasos importantes, todos eles parecem sumir. Só e sómente só é que nos vemos no espelho. Como vampiros, todos os outros sumiram. O chão se abre mas não nos recebe. Ficamos suspensos, sentindo todas as dores da tortura sem nada poder fazer.

Naquela noite, coube a mim a tarefa solidária de desvendar a solidão de minha vizinha em crise. Persegui pistas que me levaram a um tipo de compreensão nem tão facilitada, pois nem a conhecia. Tentei imitar e me colocar no lugar da minha amiga Rê. E como ela, ofereci-lhe primeiramente um copo de água e lhe disse "beba tudo devagar". E comecei a falar sobre a vida e meus problemas existenciais, para que ela esquecesse os dela.

Foi preciso lembrar de tudo que já havia esquecido. Mesmo sem querer, abri caixas e caixas lacradas do almoxarifado de minha memória. Me espantei, tudo tão intacto ainda! E mais ainda o espanto de perceber que tudo sempre retorna, por alguma razão, numa noite qualquer em que uma desconhecida bate à minha porta.

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